A Geopolítica imaginária de H.G. Oesterheld: la Guerra de los Antartes

Capa da edição de 2013

Em minha última viagem ao Uruguai, país que faz fronteira com o estado brasileiro do Rio Grande do Sul, encontrei, em uma livraria de Montevidéu, uma obra que há muito tempo queria ter em mãos. Trata-se de La Guerra de los Antartes, escrita por Héctor Germán Oesterheld, com desenhos de Gustavo Trigo

Oesterheld, junto com o desenhista Francisco Solano Lopez, criou um clássico dos quadrinhos argentinos de ficção científica, El Eternauta, sobre o qual já fiz uma resenha e você pode encontra-la aqui. Esse escritor possui uma longa lista de publicações e sua história de vida é tão fascinante e trágica quanto suas obras.

La Guerra de los Antartes é mais uma história de ficção científica, das muitas criadas pelo autor, que também enveredava pelo o campo da ficção histórica. Essa obra possui duas versões, a primeira, publicada entre 1970 e 1971 na revista 2001: Periodismo de anticipación, não chegou a ser concluída. O motivo dessa interrupção é desconhecido por mim, não sei se foi por alguma causa pessoal ou por questões editoriais. Mas, a segunda versão, que também não foi concluída – e dessa vez, eu sei o motivo –, é a que encontrei na livraria da capital uruguaia, e da qual falarei aqui.

Por mais de uma vez, Oesterheld trouxe o tema da invasão alienígena e da resistência terrestre em suas obras. Em La Guerra de los Antartes, o assunto retorna e, dessa vez, a relação entre invasores espaciais e imperialismo estadunidense fica patente. Entre 1973 e 1974, a história foi publicada em forma de tiras, que saiam no jornal argentino Noticias.

A história começa com um dos personagens principais, Sabino Torres, apelidado de el Coya, piloto da força aérea argentina. Coya tem traços indígenas, conhece o idioma quéchua e é um estudioso dos povos andinos. Algo estranho para um militar, mas isso é possível, pois ele vive em uma Argentina do futuro, uma que se libertou das amarras da influência estrangeira e construiu uma sociedade igualitária e próspera. Por sinal, no universo ficcional apresentado, todo o continente latino-americano passou por um processo revolucionário e se tornou socialista. Aparentemente, apenas o Brasil não teria acompanhado os demais países, mais tarde falaremos disso.

Coya inicia como o narrador de fatos já acontecidos. Como piloto, ele voava sobre a Antártica para descobrir o que aconteceu com a base argentina no continente, que havia cortado contato com seus superiores. A partir daí se descobre a presença de seres alienígenas instalados no local, e a história se desenrola.

Diferente do clássico El Eternauta, La Guerra de los Antartes não possui um protagonista único. Oesterheld, neste momento de sua vida, já era militante montonero e muito do que escreveu na obra são referências à sua luta e vida clandestina. Segundo o desenhista Gustavo Trigo, partes do roteiro da história, lhes foram ditadas por telefone. Pois, na ditadura militar argentina, reuniões presenciais eram arriscadas. Assim, temos um protagonista coletivo. Os pais e irmãos de Coya, os vizinhos, colegas de trabalho do pai, etc.

Em lugar do caos e desespero que vemos em histórias do gênero, onde cada pessoa ou grupo procura se esconder e proteger-se dos invasores, em La Guerra de los Antartes, temos a coletividade em luta. Em certo momento, todos saem de suas casas e inundam as ruas, ocupando a famosa Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, lugar não mais do presidente da república, mas, agora, do Consejo. Um colegiado de representantes do povo, que respondem diretamente a ele. Uma espécie de conselho revolucionário.

Carregando suas armas, o povo deixa claro aos seus representantes, sua disposição para a luta contra os invasores.

A raça dos antartes, chamada assim por ter sido descoberta na Antártica, apresenta uma tática peculiar para dominar a Terra. Na passagem da história em que se reúnem com os chefes de estado do nosso planeta (curiosidade: essa reunião acontece em Stonehenge), fazem a seguinte proposta: Cedem sua tecnologia e conhecimentos para Estados Unidos e Rússia em troca do domínio total da América do Sul. Na ocasião, apenas os países africanos se solidarizam com os sul-americanos. Mas, são dissuadidos pelas potências terrestres. Em sua imaginação, Oesterheld representou um Zaire, atual República Democrática do Congo, tecnologicamente avançado e presidido por uma mulher. Este é o único país que tenta fazer alguma coisa contra os planos de dominação extraterrestre. Por essa razão, o país é destruído com um ataque nuclear. Desferido não pelos antartes, mas por seus próprios vizinhos planetários.      

Nessa reunião, outra personagem feminina levanta sua voz contra os invasores alienígenas. É a representante de Cuba. Porém, ela é repreendida pelo seu colega do Brasil, que Oesterheld chama, simplesmente, de Soares. Percebemos que nosso país, dentro da história, parece não fazer parte do bloco de países a serem dominados pelos antartes, pois o personagem brasileiro apresenta esse comportamento, alinhando-se com as superpotências. O que me leva a pensar sobre a representação do Brasil perante a imaginação do restante dos países da América do Sul. Como somos vistos por nossos vizinhos? Na época em que o escritor criava esse universo ficcional, nosso país vivia sob um regime militar, pró Estados Unidos e inimigo de propostas de transformação social. Talvez, seja por isso que Oesterheld tenha nos representado dessa maneira.

Oesterheld demonstra uma imaginação geográfica toda distinta para a época. Nela, os países periféricos apresentam elevados índices de desenvolvimento, suas populações têm acesso à educação, os filhos das famílias operárias estudam em universidades. Seus governos se unem contra ameaças comuns e a solidariedade é um cimento que conecta toda a sociedade.

Quanto à arte de Gustavo Trigo, podemos dizer que se trata de um legítimo representante das histórias em quadrinhos argentinas, ou historietas, como dizem por lá. Os desenhos realistas apresentam um forte contraste de preto e branco, mas também meios tons, em alguns momentos. Para isso, o autor, além das tradicionais hachuras, faz experimentos com diversas texturas, incluindo digitais, que resultam em efeitos fantásticos.   

Arte de Gustavo Trigo

A publicação que tenho comigo foi lançada em 2013, pela editora Colihue, de Buenos Aires. Como mencionado anteriormente, a história não foi concluída. As garras da repressão alcançaram Oesterheld antes que ele pudesse fazer isso. O autor, junto com suas quatro filhas, faz parte da longa lista dos desaparecidos políticos da ditadura militar argentina. O que é uma monumental lástima.