Já se fala há algum tempo, em inúmeros trabalhos acadêmicos, sobre a importância das novas linguagens no ensino, especificamente no ensino de Geografia. Uma dessas novas linguagens (nem tão nova) vem adquirindo uma crescente importância em diversos fóruns de debate, encontros, seminários, meios de comunicação, etc. me refiro às Histórias em Quadrinhos. Este artigo vai tratar deste tema, não sobre sua relevância geral como forma de expressão e comunicação, nem sobre sua relação com os estudos geográficos, assuntos que já abordei em outros trabalhos, como minha dissertação de mestrado. O que gostaria de fazer, desta vez, é um exercício de aproximação entre duas obras, inovadoras dentro de seus campos de atuação. A primeira delas, chamada de Unflattening (trabalho ainda sem tradução para o português), trata-se da tese de doutorado do autor Nick Sousanis, que, quebrando as normas acadêmicas, foi estruturada e apresentada em forma de Quadrinhos. A segunda é a consagrada obra da geógrafa britânica Doreen Massey, chamada Pelo Espaço, ganhadora do Prêmio Vautrin Lud, o “Nobel” da Geografia. Essa aproximação busca, por que não, revelar possibilidades para pensar novas abordagens de educação ou de mundo e farei isso através de três tópicos, que para mim, seriam os pontos de encontro entre as obras.

Capa do livro de Massey no Brasil.

Capa do livro de Sousanis.
Encontros
Gostaria de iniciar essa aproximação através da ideia de encontro, para mim, muito presente nas duas obras (não por acaso proponho o “encontro” entre elas). Em Unflattening (aparentemente, o título da obra é um neologismo, salvo uma tradução melhor, podemos chamar de “desachatamento” ou “desplanificar”), é notória a busca por uma ampliação da visão sobre o mundo. Para o autor, a riqueza do mundo não pode ser traduzida apenas por palavras. Entende-se que, para ele, a escrita, se usada exclusivamente, pode “achatar” nossa percepção, cada vez mais restringida e colocada em “caixas” pela sociedade urbano-industrial-escolarizada, que nos apresenta poucas opções de pensar e sonhar. Tudo que nos resta é seguirmos todos uma mesma trilha. Como formigas, temos todos que, inicialmente, nos encaminhar para uma escola e estudar os conteúdos escolares. Mais tarde, na vida adulta, se quisermos desfrutar uma posição mais confortável na sociedade, devemos escolher alguma carreira, de preferência de nível universitário. Trilhando caminhos sempre já abertos e trilhados por muitos outros antes de nós.
Para o autor, valorizar outras formas de representação, além da escrita, é posicionar-se para enxergar o mundo de outro ponto-de-vista. De uma forma metafórica, Sousanis, coloca que o uso da imagem pode oferecer esse novo posicionamento, texto e imagem, como dois pontos-de-vista distintos. Sempre buscar uma segunda visão amplia nossa compreensão sobre determinado assunto. Abandonar nosso local habitual, nossa forma normal de pensar e nos situar pode nos levar a novas abordagens e descobertas. Mas, estamos preparados para isso?
É muito interessante a citação que o autor faz da obra Flatland, que conta a história de um quadrado que sai ao mundo para fazer descobertas, travando contato com os linelanders, habitantes do mundo linear ou unidimensional, que são incapazes de compreender aquele ser de duas dimensões, acostumados que estão com seu mundo. Após isso, o quadrado se encontra com uma esfera, de três dimensões, encontro que lhe causa grande satisfação, porém, ao retornar a sua terra natal, o quadrado tem dificuldades para convencer seus conterrâneos a conhecer mais além de sua limitada dimensão.
Darei mais exemplos, mas me pergunto se esse primeiro já não bastaria para justificar a profunda proximidade dessa obra com a da geógrafa Doreen Massey, intitulada Pelo Espaço. Neste livro, a autora realiza uma análise minuciosa a respeito das diferentes conceitualizações de tempo e espaço por diversos autores e em diferentes contextos e como as noções dominantes sobre esses conceitos servem como um bloqueio para a elaboração de uma nova alternativa de futuro para a humanidade.
Começando com o encontro entre espanhois e astecas, a autora debate o conceito de espaço na época das grandes navegações. Que imaginação de espaço existia para aqueles que se lançaram a “epopeia do descobrimento”? Teria mudado hoje em dia?
Para os europeus, o espaço era uma superfície a ser explorada, ocupada, conquistada. A única dimensão conhecida do espaço, a que tinha mesmo importância, era a distância (não lembrou os linelanders?). Os encontros com outros povos, durante sua jornada exploratória, poderia ser visto como um acidente. Para os europeus, essas pessoas de outros lugares estariam no meio de seu caminho, interrompendo sua trajetória, coadjuvantes dentro de sua narrativa épica conquistadora, povos primitivos que se encontravam isolados do mundo até serem encontrados por eles. Não teriam o mesmo destino glorioso e recém começavam sua caminhada para tornarem-se humanos. Viviam como selvagens dos tempos das cavernas, portanto eram de outro tempo, atrasados.
Com relação aos astecas, aparentemente, sua forma de imaginar o mundo não separava tanto assim o tempo e o espaço. Massey cita os códices astecas como representações que mesclavam tempo e espaço, reunindo gravuras que contavam histórias, cheias de simbolismos, possuindo uma lógica para serem lidas e interpretadas (alguém aí lembrou das Histórias em Quadrinhos?).

Códice asteca
Para a autora, a lógica separadora do tempo e do espaço permite o surgimento de uma imaginação de mundo desigual, que não respeita as diferentes histórias (é usada a expressão estória) de cada cultura, povo ou sociedade existentes no mundo. Para essa forma de pensar, o mundo está dividido entre sociedades modernas, avançadas e sociedades primitivas, atrasadas. Para estas últimas só resta querer “avançar” no tempo e chegar ao patamar das primeiras. Para os países pobres a única alternativa é tornarem-se “desenvolvidos”, ou seja, não existe futuro aberto para essa imaginação espacial, apenas é possível um tipo de futuro.
Os encontros que ocorrem no espaço só são possíveis pela diversidade que ele permite que exista, que é consequencia dele. Vamos falar um pouco mais disso no próximo tópico. Por enquanto, levanto esse ponto de aproximação entre as duas obras: ambas defendem a necessidade de um esforço para que ampliemos nossas de visões de mundo, enquanto uma dá ênfase ao uso da imagem e do texto para nos expressarmos, outra fala da importância de uma imaginação que leve em consideração tempo e espaço. A linguagem dos Quadrinhos guarda todas essas dimensões, a imagem e o texto, o tempo e o espaço.
A parte e o todo
Usando uma metáfora, Nick Sousanis compara a distorção que um objeto sofre ao ser imerso na água, devido a refração da luz, com a representação do mundo. Da mesma forma que um lápis parece ter se quebrado quando introduzido em um copo com água, o mundo também é distorcido quando o representamos em um mapa. Nesse caso, o agente da distorção, em vez da refração da luz, seria a linguagem. Acredito que é possível perceber que aqui encontraremos, talvez, a aproximação mais fácil de fazer entre as duas obras.
Segundo Sousanis, o mundo, ao ser transportado para um mapa, sofre um achatamento, é planificado. Nesse processo, conexões são perdidas. O leste e o oeste não se encontram, são afastados para as extremidades. Temos, então, uma ideia parcial sobre o que o mapa mostra. Precisaríamos, então de outros pontos-de-vista se quiséssemos ampliar nossa visão.
Usando o mesmo exemplo, Massey fala de como podemos divagar ao nos depararmos com um mapa, ficamos olhando os nomes dos países, dos oceanos, os limites de cada território, por onde um rio corre, etc. Mas os mapas não nos mostram as sobreposições de lugares ou territórios, os conflitos, as diferentes trajetórias de vidas que fazem parte do espaço. Temos uma visão parcial. Precisamos ampliar nossa imaginação de mundo. Enxergar o todo, o máximo possível.
Para a autora a atual imaginação espacial fragmenta o mundo, como já foi dito, seleciona lugares, classificando-os temporalmente. Os mais atrasados e os mais adiantados. Não podemos imaginar um espaço em que todas as formas de vida, todas as trajetórias sejam respeitadas e consideradas como só mais uma. Nem melhor, nem pior, nem moderna, nem primitiva. O espaço é um todo diverso. A diversidade faz parte do espaço. Na diferenciação de duas coisas, já está implicada a ideia de localização e posicionamento, assim, o espaço é a condição para o diferente. Massey coloca que os lugares formam uma simultaneidade dinâmica, coexistindo no mesmo tempo/espaço. A visão que busca classificá-los temporalmente contribui para a situação de desigualdade e exclusão observada atualmente.
Uma página de Quadrinhos não seria o mesmo? Um todo fragmentado, no qual cada parte tem sua importância na tarefa de fazer emergir daí um significado? O leitor, com sua imaginação, conecta os pontos e traz para a vida o que antes era estático e disperso. Sousanis coloca que os Quadrinhos podem até ser lidos sequencialmente, mas, de qualquer forma, quem o lê, tem a ideia do conjunto na página. Podemos seguir a parte e o todo, palavras e imagens se apoiando na formação de um significado.
A linguagem dos Quadrinhos não seria uma ferramenta importante na busca dessa nova imaginação espacial, que tenta unir pontos em vez de separá-los cada vez mais?
Espaço e diferença
Este terceiro e último tópico acaba sendo, de certa forma, mais um reforço das ideias apresentadas nos dois primeiros. Lembremos que Sousanis fala da importância da existência de mais de um ponto-de-vista na leitura do mundo. Para isso, ele usa uma metáfora. Cada um de nós (na maioria dos casos) carrega dois olhos e é graças ao seu trabalho em conjunto que podemos ter a noção de profundidade, trata-se da visão estereoscópica. Cada um, desde a sua posição, nos dá um ponto-de-vista diferente e usamos ambos para nos situarmos na realidade. Mesmo estando lado a lado, continuamos com dois pontos distintos, sempre existe uma distância entre eles. Se pensarmos assim, a possibilidade para o desconhecido continua aberta para a imaginação, sempre haverá algo novo para descobrir se tivermos em conta que, como indivíduos, somos incompletos e posso encontrar no outro uma visão distinta, expandindo, assim, a minha própria (alguém lembrou Paulo Freire? Pobre velhinho tão achincalhado nestes atuais tempos tenebrosos).
Retomando a ideia de Massey, o espaço é a condição da diferenciação. Dois elementos se diferenciam quando postos lado a lado. Essa diversidade, quando se relaciona entre si, possibilita a emergência do novo, dessa forma, temos a mudança no tempo. Sem o diferente, não pode haver transformação, não há alternativas distintas de futuro. Sem considerar a existência daquilo que não é como eu ou como nós, o que temos é um futuro fechado ou um não futuro.
Considerações finais
Espero que essa breve análise sobre essas duas grandes obras tenha sido de proveito. As possibilidades de leitura são inúmeras e quem quer que seja que elabore outras diferentes da minha, estarei muito curioso para conhecê-las. Também aguardo por uma tradução de Unflattening para o português (se já não existe), o que facilitará que mais pessoas tenham contato com esse instigante trabalho, recomendo muitíssimo a sua leitura. Da mesma forma, embora seja dispensável a minha recomendação, indico o estudo da obra de Doreen Massey, pois ainda que leve mais de três anos (meu caso) para compreender as colocações dessa autora, vale muito o deslocamento do teu ponto-de-vista para conhecer o de outros.