Aproximar o estudo da geografia ao de outras linguagens, principalmente da linguagem dos quadrinhos, tem sido meu trabalho há alguns anos. Apesar de sempre estar aberto para perceber o potencial de outras mídias, mais uma vez, são as histórias em quadrinhos (HQ) que trago para a reflexão. Desta vez, apresentarei uma análise da obra Beco do Rosário, de autoria de Ana Luiza koehler, que trata, como pano de fundo, do início da dita modernização urbana, pela qual passou a cidade de Porto Alegre, na primeira metade do século XX. Ao mesmo tempo, procurarei jogar alguma luz sobre a relação dessa obra com o campo de estudo da geografia.
Geografia e cultura
De maneira geral, podemos dizer que a ciência geográfica trata da relação entre a sociedade e a natureza, o homem e a Terra. Outra definição fala da geografia como a ciência do espaço. Para ser mais rigoroso, do espaço geográfico. Segundo o geógrafo Milton Santos, por exemplo, o espaço geográfico é formado por um sistema de objetos e um sistema de ações, ou ainda, de fixos e fluxos. Ou seja, ele se refere às construções humanas e as formas naturais mais as relações que as animam, relações sociais, comerciais, etc.
A geografia cultural, por sua vez, investigaria a influência da cultura no chamado espaço geográfico. Segundo esse enfoque, as diferentes culturas humanas deixam suas marcas visíveis no espaço. A porção do espaço que abarcamos com a vista, podemos chamar de paisagem. Assim, cada povo, com seu modo de vida, seu trabalho, seus símbolos e códigos, transformaria a paisagem de uma maneira diferente, imprimindo sua cultura nela. De acordo com Claval, no início desse campo de estudos, final do século XIX, os pesquisadores se concentravam nos artefatos produzidos por cada povo. Ferramentas ou utensílios usadas na agricultura, na construção de residências, de locais sagrados, entre outras coisas. Se acreditava em uma noção de cultura como uma força que pairava sobre os grupos humanos. Algo externos a eles e que conduzia suas maneiras de viver. Essa ideia teria mudado com o tempo.
A cultura, atualmente, também é vista como uma construção humana, que pode ser renovada de tempos em tempos, sofrendo as mais diversas influências. Presente em vários aspectos da atividade humana, da vida doméstica ao trabalho e ao lazer. Transmitida no seio familiar, escola e, com bastante força, pelos meios de comunicação. Influenciando nosso modo de viver e de ver o mundo.
Alguns autores dedicaram grande tempo ao estudo da imaginação geográfica. Ou seja, as formas de ver e imaginar o espaço geográfico. Denis Cosgrove, em seu livro Geography and Vision, aborda a imaginação geográfica percebida em pinturas, gravuras, poemas, mapas, etc. ampliando, assim, o leque de possibilidades para o estudo da geografia e, nos permitindo, então, buscar outras mídias, como as HQs, por exemplo. A imaginação espacial ainda será abordada pela autora Doreen Massey em sua obra, Pelo Espaço, onde trata, entre outras coisas, da imaginação de mundo fabricada no discurso capitalista de globalização, em que coloca uma parte do mundo como “atrasada” e outra “adiantada” ou “moderna”.
Beco do Rosário

Fonte: http://www.universohq.com/noticias/galeria-hipotetica-realiza-exposicao-da-nova-hq-de-ana-koehler/
Beco do Rosário é uma história em quadrinhos lançada em 2015, de autoria de Ana Luiza Koehler, pesquisadora e quadrinista, e conta a história de diferentes personagens que vivem em uma Porto Alegre do início do século XX, onde transformações significativas começam a ser implementadas. Alguns desses personagens assistem essas mudanças, outros são os responsáveis por elas.
Um dos núcleos da narrativa é focado sobre os representantes da população, majoritariamente negra, que vivia nos becos e cortiços existentes na área central da cidade. Enquanto vive sua vida e trata dos seus problemas cotidianos, Vitória, uma técnica de rádio, vai se dando conta da maneira como os meios de comunicação se referem aos lugares onde ela e sua gente vivem. O antigo Beco do Rosário, depois rua 24 de Maio e, atualmente, avenida Otávio Rocha, era um desses lugares. Habitado pelas pessoas mais pobres, trabalhadores e trabalhadoras do porto, dos mercados, das fábricas, etc. Ali viviam sua cultura, suas festas, enfim, tinham uma forte vida comunitária.
O outro núcleo da narrativa se centra em uma família da classe média/alta porto-alegrense, frequentadora de óperas, cujos filhos são enviados à Europa para estudar. Um desses personagens é Federico Waldoff, que regressa a Porto Alegre, depois de um período na Alemanha, onde, inclusive, participou da I Guerra Mundial. Pela sua formação acadêmica é convidado a participar do nascente projeto para a reurbanização da cidade. No qual, ele descobre, não havia espaço para lugares como o Beco do Rosário.
A obra exigiu um grande esforço de pesquisa da autora. Nela, vemos recriada uma cidade que já não existe mais. Quase nenhuma característica daquele período permaneceu, tanto nas construções como no traçado de muitas ruas. Vemos uma imaginação espacial do que pode ter sido Porto Alegre. Uma imaginação que foi suplantada por outra, a atual.
“Civilizar” os Becos
“(…) Esses becos têm de desaparecer. Não há mais lugar para essas ruelas infectas e antros de criminalidade no seio da nossa cidade“.
Essa frase, de um personagem da HQ, parece sintetizar o modo de pensar das administrações porto-alegrenses de muitos anos. A pesquisadora Nola Gamalho, em seu trabalho, já analisava as políticas de urbanização das administrações municipais dos 60 e 70, e todas tinham como foco principal o deslocamento das comunidades negras e pobres das zonas centrais para mais longe ainda. No período estudado pela autora, foi quando aconteceu o povoamento inicial do atual bairro Restinga, distante cerca de 27 km do centro da cidade, sua população fora transferida, em parte, da área que era conhecida como Ilhota, onde hoje é parte do bairro Menino Deus. Mais recentemente, em 2011/12, assistimos a transferência da comunidade do Chocolatão, localizada próxima ao parque Harmonia, para outros bairros mais afastados. Ou seja, Porto Alegre, há muitas décadas, se expande da mesma forma, expulsando populações “indesejadas” para áreas distantes. Salvo um curto período e poucos exemplos, durante a administração popular, nos anos 90, se observou, algumas vezes, uma política distinta, de valorização da presença de comunidades pobres nas áreas centrais, vide a vila planetário e vila dos papeleiros.
A imaginação espacial presente nesses projetos de urbanização não abarca a presença do diferente. Massey, já citada neste texto, fala sobre a multiplicidade inerente ao espaço geográfico, entendido como a dimensão onde acontece o encontro das diferenças, encontro de histórias de vida, do qual pode fazer brotar o novo, o futuro, quem sabe. A imaginação de espaço hegemônica entende o mundo como dividido entre os merecedores e os não merecedores, entre as pessoas de 1ª classe e as de 2ª, as imprescindíveis e as dispensáveis.
Consideráveis finais.
A obra Beco do Rosário possui uma grande importância, não só por sua qualidade artística e narrativa fascinante, mas também por tentar aproximar o leitor de uma outra cidade, de uma outra possibilidade de cidade. Mostrando a origem e como Porto Alegre se transformou no que é atualmente, que ideias e projetos foram os responsáveis pela configuração atual da capital gaúcha.
Um segundo volume da obra é aguardado, esperemos que não demore tanto.