As Sarjetas do Espaço

O artigo que publico hoje foi apresentado nas II Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, ocorrida em São Paulo, no ano de 2013, nas dependências da ECA-USP.

AS SARJETAS DO ESPAÇO

A SARJETA

Ao ler uma HQ, nos deparamos com uma história ou um acontecimento apresentado de maneira fragmentada. Conectando mentalmente os diferentes pedaços ou momentos dentro de cada quadrinho, em uma sequencia, vamos compreendendo a totalidade daquilo que quer ser mostrado. O que vemos são os fragmentos escolhidos pelo autor para melhor contar aquela história, nos deixando livres para escolhermos como fazer a ligação de todas essas partes. Porém, parece óbvio, ele espera que o façamos de determinada maneira, ainda que não tenha controle algum sobre isso.
Em seu livro Desvendando os Quadrinhos, McLoud (1995) chama de conclusão a noção que permite às pessoas, com base na experiência vivida ou transmitida, compreender o todo de uma situação através de suas partes. Segundo esse autor praticamos a conclusão com mais freqüência do que imaginamos. Observe a Figura 1, extraída da obra citada:

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Figura 1– O espaço em branco entre os quadrinhos é chamado de sarjeta. Fonte: McLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995.

Embora não tenhamos visto o machado atingir a vítima, parece evidente o que aconteceu nessa sequencia de quadrinhos. Nela, o leitor apenas imagina os acontecimentos entre a primeira cena e a segunda. Esse esforço imaginativo é exigido permanentemente para quem inicia a leitura de uma HQ. Eisner coloca que o autor é, muitas vezes, obrigado a escolher apenas alguns momentos, supostamente os mais significativos, para apresentar uma ação e, a fim de ter sua mensagem entendida, espera que, com sua experiência, o leitor faça as conexões mentais mais apropriadas para os fragmentos apresentados.
O intervalo em branco entre cada quadrinho de uma sequencia é preenchido pela imaginação do leitor, é ali que um acontecimento, apresentado visualmente em pedaços, ganha sentido. McLoud chama esse espaço, entre cada cena, de sarjeta. Ali, usamos as cores que desejarmos, passamos o tempo que quisermos, e vemos pelo ângulo que preferirmos, dando, assim, uma unidade a algo que, num primeiro momento parecia estar fragmentado
Desse modo, é possível dizer que o leitor de uma HQ não é um expectador passivo, sua participação é exigida a todo tempo. As lembranças de suas experiências, sua imaginação, seus sentimentos, tudo isso será usado para ligar os diversos pedaços de acontecimento desenhados em cada quadrinho. O que McLoud (1995) chamaria de um “ato de fé”, poderia ser explicado como uma capacidade humana de aceitar a existência de outras “realidades” ainda que não se esteja imerso nelas. É possível que essa seja a característica diferencial da linguagem dos Quadrinhos.
A linguagem cinematográfica utilizará também o recurso da conclusão, porém para causar algum efeito específico ou fazer algum suspense. Assim, alguma sombra projetada em uma parede, alguma cena omitida, podem acontecer, mas, na maioria das vezes, em um filme, os acontecimentos vão se desenrolando em uma tela defronte nossos olhos, e só temos o trabalho de deixar que as imagens invadam nossas retinas para compreender o que se passa. O autor de Quadrinhos não conta com essa possibilidade, ele precisa escolher os momentos mais importantes de uma ação para serem congelados e “enquadrados”. Esperando, assim, que o leitor faça o trabalho de dar sentido às imagens que ele escolheu. Quanto mais essas imagens tratarem de situações reconhecíveis para a experiência do leitor, mais provável será que o autor atinja seu objetivo.
Assim, por que não dizer que a leitura dos Quadrinhos também exige alguma leitura de mundo? Talvez isso seja possível, se considerarmos que é através das experiências vividas, do que aprendemos das nossas relações sociais ou do que conhecemos nos meios de comunicação que damos sentido, ou vida, às várias imagens que nos aparecem nas páginas de uma História em Quadrinhos. Em um primeiro momento, essas imagens não são mais que fragmentos, mas, depois de se conectar mentalmente cada cena, o que temos é uma história, ou, ao menos, a nossa história.
Não seria dessa maneira, igualmente, que se dá a nossa leitura de mundo? Quando assistimos TV, quando lemos um jornal ou revista, quando navegamos na internet, quando estamos olhando pela janela de um ônibus, etc., não estamos, também, procurando dar sentido a essa enxurrada de imagens que vemos? Não temos que pensar no que pode ter acontecido antes, ou no que poderá acontecer depois, de determinada cena com que nos deparamos? Nossas concepções de mundo e experiências vividas não são sempre chamadas a nos ajudar a entender o que se passa ao nosso redor? Pois bem, gostaria de me deter um pouco mais nesse questionamento.

O MUNDO EM FRAGMENTOS (OU QUADRINHOS)

Conhecemos o mundo, aquele mundo além do alcance dos nossos olhos, por partes, por fragmentos. À medida que vamos realizando nossas experiências ou vivências, conhecemos partes desse mundo. De outras partes dele, tomamos conhecimento através dos relatos que recebemos, seja pelos meios de comunicação, seja em conversas, etc. Apenas nos restando, portanto, acreditar, ou “ter fé”, que exista algo mais do que está diante de nós.
Rego faz uma interessante metáfora do mundo, ou da vida, como um texto escrito. Porém, imaginando-o, não composto por palavras, mas, sim, por fatos e condições. Sendo assim, é possível pensar uma leitura de mundo como um processo de entendimento e compreensão de seus fatos, do mesmo modo que vamos dando sentido a cada palavra numa frase e buscando as relações existentes entre elas para entendermos o significado geral do todo que se quer comunicar, ou ainda, darmos o nosso próprio significado para ele. De acordo com a maneira como fazemos a conexão entre os fatos da vida, e da concepção que temos sobre eles, as coisas que nos cercam ganham sentido e, quem sabe, nós mesmos o ganhemos também, à medida que significamos e ressignificamos os lugares. Então, como nos chegam esses fatos do mundo? Ou, para manter uma conexão com o assunto desse trabalho, como nos chegam os “quadrinhos” do mundo?
Uma coisa parece certa, isso não acontece como nas páginas das HQs. Na vida não temos uma sequencia linear das coisas diante de nós e, dessa forma, precisamos fazer as conexões entre fatos distanciados espacialmente e temporalmente um do outro, ou ainda, temos que buscar diferentes olhares sobre esses mesmos fatos para realizarmos nossas leituras de mundo.
Oliveira Jr e Mansur (2012) fazem uma discussão a respeito das imagens relacionadas com determinadas paisagens que acabam por ganhar o status de representantes fiéis dessas. Os cartões postais, por exemplo, disponíveis em bancas de revistas ou pontos turísticos, carregam, neles, a imagem de um lugar que, para muitos – os turistas, os governos e as agências de turismo, entre outros – é a verdade sobre esse lugar.
Os autores trazem para a discussão o exemplo de um cartão postal do Rio de Janeiro. Nele, é possível ver a conhecida foto aérea da estátua do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Ao longe, se vê a cidade, com seus prédios multiplicando-se sobre os morros. Trata-se da imagem mais difundida pelos meios de comunicação, nas novelas, no cinema, nas revistas de turismo, etc., para muitos: o próprio “Rio de Janeiro”.
Possivelmente, para se constituir outras narrativas diferentes a cerca do mesmo tema, seria necessário buscar outras fontes, outras imagens, outros meios, encontrar outros sujeitos que tenham, então, outras visões. No caso do Rio de Janeiro, talvez fosse preciso conhecer seus moradores, visitar locais omitidos nos cartões postais, assistir filmes ou ler livros que enfoquem o mesmo lugar, sob um ponto de vista distinto. Enfim, conectando os “Quadrinhos”, se tentaria, então, realizar uma nova leitura desse espaço.
Como fazer esse exercício na aula de Geografia? Sem a pretensão de responder essa pergunta, trarei exemplos de uma proposta de prática realizada por mim, em algumas turmas com as quais trabalhei durante o ano de 2012, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Cincinato Jardim do Vale, no município de Gravataí, Região Metropolitana de Porto Alegre. Nela, tento, junto aos alunos, articular uma leitura espacial através da linguagem dos quadrinhos, chamando-os a refletir sobre as informações, imaginações e ideias que possam ter a respeito de lugares e, também, dos conteúdos geográficos.

CONECTANDO OS FRAGMENTOS (OU QUADRINHOS)

Tentando, então, pensar uma atividade que permita praticar uma leitura dessas imagens que nos chegam sobre o mundo, pelos mais diversos meios, cheguei a uma proposta que tem a linguagem dos quadrinhos na sua base. Mais precisamente, deslocando a ideia de conclusão para uma possível leitura geográfica
A proposta foi realizada em minhas aulas, com duas turmas do 6° ano, na escola onde trabalho atualmente e consistia, primeiramente, em distribuir tiras de quadrinhos entre os alunos e alunas. Essas tiras, montadas por mim, possuíam três quadrinhos, sendo primeiro e o terceiro, vazios, e, no do meio, se podia ver uma fotografia em preto e branco de um morro parcialmente ocupado por uma provável favela. Como se vê na Figura 2.

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Figura 2 – Quadrinhos em branco. Fonte: Montado pelo autor.

Após a distribuição das tiras, pedi aos alunos que, em duplas, pensassem em desenhos para preencher os quadrinhos em branco. Estavam livres para fazer como quisessem. Não importando o grau de habilidade para o desenho que pudessem possuir. A intenção era a mobilização de seus pensamentos e imaginação. Como poderia ser aquele morro antes que as casas fossem construídas? O que acontecia por lá? E como ficará aquele lugar depois? Quem são as pessoas que vivem lá? Por que foram para lá? Essas, entre outras, eram algumas questões propostas para ajudá-los na tarefa.
Favelas e morros estão sempre presentes no imaginário a respeito do Rio do Janeiro e, ainda que meus alunos, em alguma medida, habitem lugares semelhantes, esses elementos não pareceram mobilizar suas imaginações a respeito de seu próprio lugar. Falando de outro modo, ao se depararem com uma imagem de um morro ocupado por casas humildes, a maioria deles a relacionou com o Rio de Janeiro e não com suas vizinhanças em Gravataí.
Sabemos que morros e/ou favelas não existem apenas na cidade do Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, esses elementos estão igualmente presentes1 e em muitas outras cidades e países encontraremos coisas semelhantes. Será, então, possível que as imagens dos meios de comunicação sejam tão mais fortes que nossas vivências, a ponto de determinar nossa relação imagem-lugar?
E sobre os morros cariocas? Que imaginações existem a respeito desses lugares? Que significados são produzidos sobre eles? Como os alunos imaginam as transformações que ocorrem no espaço e se as imaginam? Procuraremos discutir um pouco disso através dos quatro trabalhos a seguir, escolhidos dentro de um universo de cerca de vinte outros, por trazerem aspectos interessantes a respeito das imaginações e transformações espaciais.

O primeiro deles, na Figura 3, nos traz uma visão sobre o chamado “morro”, que foge de alguns prováveis estereótipos mais comuns ligados a esse lugar. Na história intitulada “A Visita ao Morro”, vemos duas personagens que seriam duas meninas, amigas ou colegas, conversando.

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Figura 3 – A visita ao morro. Fonte: Trabalho de alunos.

Abaixo, em itálico, reproduzo o texto, para facilitar a leitura, lembrando que seus possíveis erros de ortografia foram mantidos como no original:

Scheron e Taisia estavam conversando.
– Amiga fiquei sabendo que tem um morro muito legal pra conhecer.
– Que legal, vamos conhecer.
Logo depois que elas conheceram.
– Amiga adorei conhecer.
– Eu também poderíamos ir lá mais vezes.
Neste exemplo, as alunas, de alguma maneira, realizam uma versão diferente daquela que permeia o imaginário a respeito desse lugar. Aqui, o “morro” não é dominado por traficantes ou bandidos, como normalmente é representado nos noticiários, onde a qualquer momento uma bala perdida pode atingir qualquer um, onde os confrontos entre facções “aterrorizam” a população e onde a Polícia Militar trava sua “guerra” contra o crime, protegendo as “pessoas de bem” que vivem fora dali.
As autoras da tira de quadrinho escolheram dar outro significado a esse lugar. Lá, como em um bairro de gente abastada, é possível conhecer pessoas, fazer amigos e passar horas agradáveis. Inclusive, é possível que se queira voltar para lá, segundo a história. Como essa visão pode ser apresentada nessa HQ? Quem sabe, as alunas vivam em lugares parecidos com esses ou conheçam quem viva. O importante é que, desse modo, podemos discutir com a classe, como um todo, quais são as imagens normalmente difundidas sobre o “morro”, quem as difunde e o porquê e se existe outro modo de concebê-lo. Essa parece ser uma questão pertinente para a aula de Geografia, se considerarmos que as concepções a respeito dos lugares, assim como seus aspectos visíveis e materiais, são constituintes dos próprios lugares.
Uma visão bem diferente pode-se perceber na próxima HQ, a da Figura 4, mais próxima da ideia comum, veiculada, de alguma maneira, nos meios de comunicação.

 

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Figura 4 – A bomba na favela. Fonte: Trabalho de alunos.

Mais uma vez, reproduzo o texto da história:
O Rio de Janeiro botou uma bomba na favela para acabar com a bandidajem!!
– O que é isso aí?
00:00. Bomba nuclear.
– AHAHA!
No primeiro quadrinho, temos a imagem em close do que seria uma bomba-relógio, com um pequeno personagem, no canto direito, que a encontra. O terceiro quadrinho mostra uma explosão, em meio ao que parecem ser gritos. E, de acordo com o texto, foi o “Rio de Janeiro” quem instalou o artefato na favela. É curioso pensar em quem estaria sendo representado na expressão “Rio de Janeiro”. O governo do estado? A sociedade carioca? Quem saberia… De fato, às vezes é possível, em alguma conversa do dia-dia, escutar alguém verbalizar soluções para os problemas das favelas, como por exemplo: “Tinha que colocar uma bomba lá” ou “tinha que matar tudo”. Essa ideia, muito comum, parece ser a que baseou a HQ dos alunos.
Como os autores da tira de quadrinhos puderam demonstrar uma imaginação como essa a respeito desse lugar? As constantes imagens de militares armados para a guerra, invadindo morros, veiculadas nos meios de comunicação, não contribuiriam com a produção e reprodução desse tipo de visão? No final de 2010, teve ampla cobertura em TV e em jornais, a operação levada a cabo pelas polícias do Rio de Janeiro, polícia federal e forças armadas no conjunto de comunidades conhecido como “Complexo do Alemão”. A partir das falas de apresentadores de telejornais e comentaristas de questões de segurança, podia-se pensar que essa era uma solução há muito esperada e, talvez, a única possível: a “solução final”, a modo de Adolf Hitler, o extermínio total. Para quem simpatizou com as imagens de tanques adentrando uma favela, seria difícil aceitar que lá se detonasse uma bomba nuclear? Fica a questão.
A solução militar para as questões sociais, a violência urbana ou a pobreza, é a única possível? Quais as principais diferenças entre a primeira HQ e esta? Que visões elas apresentam sobre esse lugar? Onde é mais comum observar cada uma das duas visões? Quem são as pessoas que divulgam e concordam com uma ou outra? Qual é a mais divulgada na TV? Qual delas corresponde à verdade? Existiria uma verdade a respeito desse assunto? A discussão é ampla e outras perguntas podem ser pensadas.
A terceira tira de quadrinhos fará alusão a assuntos relacionados mais com as prováveis modificações processadas na superfície física terrestre do que a visões de mundo a respeito de algum lugar. Ainda que esta possibilidade não possa, de modo algum, ser descartada neste exemplo da Figura 5.

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Figura 5 – O deslizamento. Fonte: Trabalho de alunos.

No primeiro quadrinho, se vê o que parece ser o início de um processo de ocupação: uma só construção, similar a uma igreja, mas com uma chaminé, ao lado da qual há um personagem que diz: “Ta tarde, minha gente”! Ele parece segurar uma ferramenta e, acima dele, e à direita, três linhas horizontais que lembram uma plantação, pelas formas pontiagudas ou em formato de folha que se elevam dessas linhas. À direita da provável plantação, temos o que seria um caminhão, cujo motorista estaria dizendo, através do balão: “Vamos morar aqui”. Abaixo da plantação outra construção parecida com um galinheiro e, ao redor do quadrinho, desenhos de árvores, sendo estas o elemento preponderante. Esse desenho poderia ser a imaginação de uma provável paisagem anterior à mostrada no segundo quadrinho. No qual as construções humanas são um pouco mais visivelmente numerosas.
Aqui, talvez mais do que nas duas primeiras tiras de quadrinhos, é forte o trabalho de conclusão dos alunos, imaginando um espaço em transformação: o morro que, hoje, se encontra ocupado por uma favela, provavelmente, estava vazio dela, ontem. Que forças atuam nesse processo de ocupação? Por que pessoas procuram esses locais para fazerem suas moradias? Quais as consequencias desse fato?
Uma resposta a última pergunta é construída pelos alunos no terceiro e último quadrinho da tira, onde se lê logo abaixo: “Aconteceu um deslizamento”. Não seria essa uma das consequencias do processo desordenado de ocupação de encostas? A retirada de árvores não acarreta uma maior erosão? Nesta tira, os alunos podem ter realizado um raciocínio espacial tendo, também, recorrido a sua experiência, provavelmente vivida em outra aula ou assistindo ao noticiário de TV, para elaborar a presente conclusão.
Neste último quadrinho também se vê o que parece ser um desenho do Cristo Redentor sobre o morro. Como que para nos lembrar de onde a história se passa, e, quem sabe, querendo dizer que se tratando de uma favela em um morro, não poderia se passar em outro lugar.
De qualquer modo, não seria essa uma base para um exercício de pensamento espacial mais próximo de um ensino de Geografia preocupado com a questão da espacialização dos fenômenos e não tão preocupado com a memorização de dados? Uma proposta que chame os estudantes a produzir conexões entre fatos e informações, relacionando-os da maneira mais adequada com o que imaginam ou acreditam, não seria de grande interesse para professores e professoras que querem dos seus alunos e alunas mais do que respostas prontas para perguntas prontas? A discussão segue em aberto.

REFERÊNCIAS

McLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995. p. 24-93.
OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Fotografias Dizem do (nosso) Mundo: educação visual
no encarte Megacidades, do jornal O Estado de São Paulo. In: TONINI, Ivaine Maria et al
(Orgs.) O Ensino de Geografia e suas Composições Curriculares. Porto Alegre: UFRGS,
2011. p. 245-257.
OLIVEIRA JR, Wenceslao M de; MANSUR, Mônica. Fotografias, Geografias e Escolas.
Disponível em http://alb.com.br/arquivomorto/
edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE_1364.pdf. Acesso em 26 out.
2012.

O Espaço em Quadrinhos

Quadrinhos na internet

Como primeiro post desse blog, escolhi o artigo que enviei para o II Congreso Internacional Viñetas Serias, que teve lugar na cidade de Buenos Aires, no ano de 2012. Nele discuto um pouco a ligação entre o uso das imagens e o conhecimento geográfico, também trago um relato de prática de aula com a linhagem dos quadrinhos.

O Espaço em Quadrinhos

Este artigo se baseia em meu trabalho de mestrado, realizado no Programa de Pós- Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De maneira mais compacta, apresentarei as principais discussões levantadas em minha pesquisa e as experiências, nas quais me envolvi, com o uso das Histórias em Quadrinhos (HQs) na prática de ensino de Geografia.
Compreendendo que o conhecimento geográfico pode ser estudado em mais de uma linguagem, portanto, indo além do texto escrito, dos gráficos e, principalmente, dos mapas (Oliveira Jr, 2010), proponho, certo de que não sou o único a fazer isso, a utilização de um veículo cada vez mais presente no universo acadêmico e escolar: as HQs (Vergueiro; Ramos, 2009).
As imagens fazem parte da construção do discurso geográfico desde há muito tempo (Cosgrove, 2008), com o uso de desenhos, croquis, fotos, com a observação da paisagem, etc. O pictórico está presente de muitas maneiras no estudo da geografia, assim, educar os olhos se torna uma questão importante no ensino dessa disciplina, não apenas no sentido de adquirir uma capacidade de captar visualmente os detalhes do espaço geográfico, suas cores e formas, mas também no de trabalhar uma compreensão do que significa o ato de ver (Oliveira Jr, 2009), de como construímos conhecimento através dele e de como o que vemos ao nosso redor se enche um pouco de nós mesmos, de nossas concepções, de nossas imaginações. Dessa forma, ao se constituir de uma leitura de imagens, as HQs têm muito para contribuir.

Começando a História

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. Jorge Germano Sperb, na cidade de São Leopoldo, foi o local escolhido para o desenvolvimento de minhas propostas de atividades em aula. Neste texto apresentarei uma delas, que se deu da seguinte maneira: cada dupla de alunos procurariam imagens digitando palavras-chave ligadas ao conteúdo estudado em aula, como «capitalismo», «socialismo», «desenvolvimento»,
«subdesenvolvimento», «desigualdade», «livre-mercado», «pobreza», «riqueza» e

«consumismo». Com as imagens escolhidas, a elaboração de HQs, usando um programa de edição digital de imagens, seria o passo a seguir. A montagens teriam de uma ou até duas páginas. Estou ciente de que esse condicionamento para a busca no site teria implicação nos trabalhos, quiçá limitando sua criatividade, mas entendi ser necessário, para que os mesmos se focassem na tarefa. Sabemos como a disponibilidade de internet pode levar alguém à dispersão fácil e entendo que aí estava meu papel como professor, ou seja, tornar possível aos alunos o alcance de suas potencialidades de criação e aprendizagem.
A escolha das imagens era livre, dentro das sentenças propostas e de acordo com a história pensada por eles. Feito isso, cada dupla partiu para o uso do OpenOffice-Draw. Um programa onde é possível trabalhar com diferentes imagens, ordená-las, diminuí- las, aumentá-las, sobrepô-las, acrescentar textos em caixas ou em balões, etc. Trata-se de uma versão equivalente ao Publisher, o editor de imagens do Windows. O uso dos computadores não representou uma dificuldade para esses jovens: como era de se imaginar, todos já estavam habituados a comunicar-se pelas redes sociais da internet e a realizar seus trabalhos escolares através dessa ferramenta.
Nesta parte da atividade é que as imagens aleatórias do Google ganhariam um ordenamento ou uma imaginação, não sei se distinta do comum ou não. Para Goettert (2010: 96), «Imaginar o Mundo Moderno é imaginar um mundo feito margens, pedaços recortados de um espaço desigual, mas combinado». Assim, esse mundo recortado que o Google Imagens nos apresenta receberia uma combinação, através da capacidade que a linguagem dos quadrinhos possui de, por meio da imaginação do leitor ou do autor, dar sentido àquilo que, de maneira objetiva, se encontra fragmentado. E, de certa maneira, não apenas pela Internet vemos um mundo em partes. Segundo McLoud (1995: 62): «Nossos sentidos podem revelar um mundo fragmentado e incompleto. Mesmo uma pessoa muito viajada só pode ver partes do mundo durante uma existência. Nossa percepção da “realidade” é um ato de fé baseado em meros fragmentos». Ou seja, nossa capacidade de imaginar o que não está dado para os olhos pode ser trabalhada através da leitura das HQs, aproximando-a com a leitura geográfica.
Em todos os Quadrinhos analisados, aspectos diferentes do imaginário ligado ao capitalismo são observados. A ideia de ascensão social, de que somente com um elevado patamar de consumo se pode atingir a chamada felicidade, a noção de desenvolvimento e o conflito entre ricos e pobres e suas implicâncias espaciais são trabalhados pelos alunos, trazendo possibilidades para a análise geográfica. Assim, parte das construções que sustentam o discurso capitalista se faz presente nas atividades realizadas e podem, assim, ser interpeladas pelo professor. Trago dois desses trabalhos feitos pelos alunos, com suas ortografias originais.
Observando a primeira montagem, a da Figura 1, intitulada Crianças Com Fome!, vemos, no quadrinho inicial se vê a imagem de uma criança raquítica, disponibilizada pelo Google Imagens ao se digitar as palavras «pobreza» ou «subdesenvolvimento».
Parece difícil imaginar outra fala para aquela personagem além da lida no balão:

«Que vida ruim, não tenho os pais, moro na rua e tenho muita fome». A história continua no próximo quadrinho, com outra personagem (ou será a mesma?), referindo- se ao seu local de moradia, semelhante a um campo de refugiados, da seguinte maneira:
«Moro aqui neste lixo». No final ela manifesta um desejo, o seu balão de fala projeta-se para a parte inferior da folha, ao lado direito do último quadrinho e nele se pode ler:
«Queria viver assim»! Ao lado esquerdo desse balão se vê um quadrinho com a imagem de pessoas em um momento de lazer e relaxamento. Este se divide em dois, de um lado um casal imerso da cintura para baixo em um lago de águas cristalinas se alimenta de frutas tropicais e no horizonte se vê o que parece ser uma montanha coberta de vegetação, o que dá um aspecto paradisíaco à cena. Na outra metade do quadrinho, parecemos ver vizinhos realizando uma confraternização, com garrafas de cerveja sobre uma «mesa-boia», bem como um botijão de gás, que parece servir para cozinhar ou assar algo.
No último quadrinho, uma situação de desigualdade está retratada: enquanto os ricos viajam para um paraíso terrestre, os pobres aproveitam uma enchente para fazer uma festa na «piscina». A situação dos moradores do bairro na foto, ainda que de precariedade, parece ser melhor que a do menino pobre do quadrinho anterior, justificando a sua fala.
Na transição do segundo para o terceiro quadrinho há um grande salto espacial, um salto duplo, se considerarmos os dois espaços mostrados no mesmo quadrinho: a ilha paradisíaca e o subúrbio de uma grande cidade. Ambos representando uma vontade do menino de mudar de vida, de alcançar uma existência menos precária. O caminho a percorrer para chegar àquela mesa farta no lago parece ser longo e, para a história única mundial, não há outro, apenas o do sucesso financeiro, com viagens turísticas ao redor
do mundo. Fora desse caminho, só existe a miséria, a barbárie e a não-civilização. Assim, fecham-se as probabilidades e as proliferações de pensamentos, de concepção de outras formas de convívio entre as pessoas e dessas com o espaço geográfico (Oliveira Jr, 2010).

figura1

 O próximo trabalho, nas Figuras 2 e 3, também abordará a questão da desigualdade social, porém trará outra dimensão dela, a do conflito social. Em Um
Mundo Diferente temos, no primeiro quadrinho, a imagem de um homem rico, com um charuto entre os dedos e rodeado por notas de dinheiro e outros símbolos de riqueza, que, em sua «fala», se gaba de sua situação: «Como é bom ser rico sem nenhum pobre para atrapalhar». No segundo quadrinho temos uma concentração de pessoas com bandeiras, sendo que as vermelhas estão em destaque, sugerindo uma manifestação de protesto. Lendo o quadro ao lado esquerdo, descobrimos quem é esse homem: «Então armaram uma greve para invadir a casa do enpresaria Carllos para acabar com a suas riqueza». Seguindo a leitura, temos uma transição que nos leva à cena de uma provável loja de televisores, repleta desses aparelhos, onde um dos personagens «fala», através de um balão: «Terremos que falar com nosso inpresario Carlos que não esta dando serto as vendas de TVs».
O resultado se vê no último quadrinho, com pessoas em uma espécie de «lixão», onde, de um balão partindo de uma delas, se pode ler: «Que merda esse inpresario tirou nossas casa e nos jogou no meio do lixo».
Do mesmo modo que em todas HQs de alunos apresentadas nesse trabalho, esta trará uma transição quadro a quadro conhecida, segundo McLoud (1995:71), como
«transição cena – a – cena», na qual somos levados, através de grandes cortes espaciais e temporais, de uma parte a outra da narrativa, cobrindo consideráveis distâncias. Assim, conhecemos a história de um empresário que, talvez pela greve de seus empregados, vê as vendas de suas lojas de televisão baixarem e com isso resolve investir no ramo imobiliário, comprando terras, nas quais pessoas pobres moravam, para a construção de casas de alto padrão.
 Figura 2

Figura 3

De que «mundo diferente» esta história nos fala? Sou assaltado pelo mesmo sentimento de Foucault ao contemplar “Isto não é um cachimbo”, de Magritte (Foucault,
2004). Mais uma vez, os olhos voltam-se para a HQ, a fim de procurar o que há de diferente nesse mundo. Vemos o conflito comumente estabelecido entre os possuidores de riquezas e os carentes materiais, cuja situação de pobreza sempre o coloca em desvantagem social, pois além de viverem em moradias precárias, não têm nem a certeza da sua permanência nas mesmas. O vai e vem dos mercados influenciando as ações humanas, como a compra de um terreno e o seu uso para construção de um bairro privado, ou a expulsão de famílias de alguma área e a sua consequente conversão em sem-tetos a inchar a população de rua e a pobreza nas cidades, ou, então, a diminuição do poder de compra dos salários dos trabalhadores, levando-os a decretar uma greve contra essa situação de concentração de riqueza. Até aí não parece haver diferenças significativas com o que se conhece sobre o mundo, normalmente.
O próximo quadrinho mostra o que parece ser uma favela vista de longe e o quadro ao lado esquerdo segue a narrativa textual: «Carlos quer conprar esta vila para construir casas chiques para sua revenda», dando a entender que o empresário Carlos decidiu mudar de ramo de negócios, do comércio de aparelhos eletrônicos para a especulação imobiliária.
Cada imagem usada na HQ, se tomada isolada das demais, possivelmente produzirá um sentido diferente do produzido quando em junção com as outras. A imagem de pessoas em um chamado lixão, grosso modo, não é mais do que isso. Porém, a maneira como ela foi introduzida na narrativa é que nos faz pensar em como essas pessoas foram levadas para lá e quão injusta é essa situação. Certamente, não seria necessário que uma imagem como esta fizesse parte de uma sequência de outras, ou viesse acompanhada de um balão de fala, para que o leitor a considerasse como a representação de uma injustiça social. Isso porque este já teria, provavelmente, sua carga de experiência sobre o mundo, sentidos já produzidos, visões já formadas,
fazendo-o chegar a essa conclusão, assim como outro alguém poderia chegar à outra qualquer. Não precisaria ser uma fotografia o objeto de contemplação; estou me referindo a todas as nossas experiências sensíveis, seja assistindo à televisão ou a um filme, seja caminhando pelo bairro, ou como passageiro de ônibus ou trem. Nossa visão, no sentido de concepção de mundo, estará o tempo todo ligando cada impulso visual com a nossa imaginação.
Um mundo diferente, ou um espaço geográfico, pode ser percebido por cada um de nós: o empresário rico, o pobre despejado, o professor, a professora, o estudante, o morador de um bairro operário ou de um condomínio de luxo. Vemos vários mundos e agimos, ou não, para viver nesses mundos como os imaginamos. Nossos conceitos mediam nossa relação com o que está ao nosso redor, o espaço em que vivemos, bem como espaços mais distantes. Usando outras palavras, Rego (2003: 280) se refere a essa leitura como uma hermenêutica instauradora:

Seria exatamente essa hermenêutica [interpretação geográfica], no sentido de que ela tem esse texto primeiro, que é o espaço geográfico, e que através de seus conceitos vai relacionando estes fatos [geográficos] […] torna-se [então] possível estabelecer inter-relações e nexos explicativos entre os fatos e, portanto, níveis de entendimento cada vez mais complexos, com capacidade de articulação entre o particular e o global.

Dessa forma, ao trabalhar as HQs os alunos realizaram uma leitura geográfica, articulando fatos como a existência de pessoas pobres, moradores de rua, pessoas ricas, condomínios de luxo, favelas, desigualdade social, manifestações populares, engarrafamentos de trânsito, etc. enxergando nexos expressados em seus trabalhos, como, por exemplo, o da luta individual por ascensão social em um mundo capitalista e a imposição de haver uma história única a ser seguida por todos.

Sugerindo Caminhos
Sendo as imagens um importante meio pelo qual conhecemos o mundo, trabalhar com elas no ensino de Geografia se faz necessário e a maneira particular com que a linguagem dos Quadrinhos comunica tem muito a acrescentar a essa empreitada. As HQs podem auxiliar na construção de um olhar capaz de distinguir e dar sentido à torrente de imagens que nos chegam todos os dias pela mídia, procurando, assim, a interpelação dos discursos e praticando, portanto, uma leitura que é mais do que a recitação de palavras escritas, porque:

Leitura não é só livro. Leitura é tudo. […] Assim, pode-se dizer que uma leitura sempre é o caminho para outras mais, numa espiral sem começo ou fim. Um outdoor leva a uma fotografia, que leva a um vídeo, que leva a um programa de televisão, que leva a um desenho animado, que leva a uma história em quadrinhos, que leva a um livro, que leva a um filme, que leva a um outdoor anunciando a estréia de um longa-metragem (Vergueiro; Ramos, 2009:40)

Minha experiência se deu de forma complementar a aula expositiva do professor titular da turma participante do estudo. Nesse sentido, então, o trabalho não visou à superação de um dito modo antigo ou tradicional, nem se apresentou como a salvação para professores cansados e alunos desinteressados. Os Quadrinhos podem servir de ferramenta auxiliar para o conteúdo de Geografia, mas avançar desse uso puramente utilitarista para a construção de uma aula mais criativa e instigante me parece de grande interesse.
Sobre os Quadrinhos em sala de aula, Vergueiro e Ramos (2009, p.9) colocam: “Houve um tempo, não tão distante assim, em que levar revistas em quadrinhos para a sala de aula era motivo de repreensão por parte dos professores”. Se no passado as HQs eram incompatíveis com o ambiente escolar, essa realidade, como vimos, tem mudado.
Referências Bibliográficas

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