– Ah, sai daqui! Teu pai até carroceiro é!
Carroceiro… nas escolas, essa é uma ofensa bem comum entre alguns alunos. Eles se sentem rebaixados quando são associados a essa atividade, é briga certa. Como esse estereótipo é construído e reforçado? Não tenho respostas, mas desconfio.
Aceitar o diferente parece ser cada vez mais difícil na nossa sociedade. Aqueles ou aquelas que de alguma forma não seguem os padrões estabelecidos, seja de comportamento, de pensamento, de consumo ou de vida, enfrentam, atualmente, severas dificuldades para tocar adiante sua existência, tanto material, quanto cultural.
Veja o caso dos catadores de material reciclável de Porto Alegre. Recentemente, acabou-se o prazo para que se retirasse de circulação, das ruas da cidade, todos os veículos de tração animal e humana (Veja matéria aqui). Justamente, os veículos usados por essas pessoas. Agora, eles estão proibidos de exercer a atividade que lhes garante o seu ganha pão. Mas não é só isso, a carroça não representa apenas o sustento material, em alguns casos, ela é um modo de vida também. Um modo de vida mais lento, com outro ritmo, que entra em conflito direto com a vida nas grandes cidades, a única vida que é permitida ter.
No filme de 2012, Tradução da Miséria, dirigido por Christofer Dalla Lana e Diego Dornelles, com roteiro de Joe Nunes e produção de Vanessa Schuh, é possível ter uma noção desse modo de vida de quem trabalha catando material reciclável pelas ruas. A velocidade dessas pessoas é a das suas pernas, ou as do cavalo, o tempo delas é o das suas necessidades.
Assista o filme abaixo:
A obra foi feita em estilo documentário, cheia de entrevistas com catadores e catadoras e informações, de vez em quando, esse tom mais sisudo do documentário é quebrado por passagens mais poéticas, que levam o telespectador a refletir sobre o conteúdo. A transição de uma cena a outra é feita de uma forma muito bonita, dando foco a uma chuva caindo no telhado, a lama, a vegetação. Também os retratos, pintados pelo roteirista do filme, Joe Nunes, marcam a mudança de um entrevistado a outro, dando um ritmo ao filme, parecido com o da vida dos personagens principais.
Os relatos dos entrevistados nos dão bem a noção do que é seu dia a dia, das ofensas que sofrem por “atrapalharem” o trânsito, por mexerem no lixo das outras pessoas, etc. Contam que não são considerados “trabalhadores”, por não usarem uniformes, não terem carteira assinada e nem horário rígido. Chama a atenção o relato de uma senhora que diz: “somos felizes assim, sem hora para trabalhar”. Outra conta da experiência que teve, trabalhando em uma fábrica e como isso prejudicou a maneira como ela tocava a vida. Teve de começar a pagar uma creche para os filhos, porque no turno livre deles, ela tinha que estar no trabalho, obrigatoriamente. A questão de esperar para receber o pagamento só no final do mês, um salário baixo, logicamente, também quebrou com a administração doméstica. Porque, antes, quando trabalhava de catadora, bastava sair com a carroça, achar um material na rua e vender na hora mesmo, sendo mais rápido, assim, a entrada de recursos para as necessidades da casa.
Vemos aí, um outro modo de experimentar a existência, distinto da cultura da classe média dos grandes centros urbanos. Onde a preocupação é com pagar a prestação do carro, a conta do condomínio e da TV a cabo e internet, chegar na hora certa ao trabalho, tomar o ônibus, enfrentar o trânsito, etc.
Nossas cidades estão cada vez mais organizadas para sufocar os momentos de encontro. A geógrafa Doreen Massey fala que, atualmente, são muitas as conexões “espaciais” e numa distância mais longa ainda. Podemos nos conectar com o mundo todo, graças à tecnologia, mas não temos contato com nosso vizinho, com quem passa por nós na rua ou com quem senta conosco no mesmo banco de ônibus. Existe uma comunalidade maior, mas dentro de espaços não contíguos, ou seja, fragmentada. Não acontece na materialidade das nossas vidas. A multiplicidade, que é uma característica do espaço, tem dificuldade de se encontrar nas cidades. Esse encontro, que seria a condição para a criação de algo novo, portanto, acaba, muitas vezes, não acontecendo. A autora se refere às trajetórias de vida, que podem se cruzar ou não, desse cruzamento, desse acaso, pode-se constituir a mudança. Essa mudança é, então, sufocada, pelo modo de vida urbano-industrial.
O cidadão médio, dirigindo seu carro, não quer alguém conduzindo uma carroça na mesma pista que ele. Temos, aí, um conflito de tempo e espaço, de modos de vida distintos, impedidos de se harmonizarem por um pensamento dominante de progresso e velocidade, que se materializa em leis que proíbem a circulação de veículos não industrializados na cidade. Terminando, assim, por proibir um modo de vida não industrial, não fabril.
Como podemos começar a trabalhar a multiplicidade nas nossas cidades? Como fazer com que mais encontros sejam possíveis? Como dar condições para que o novo se materialize? Me parece que essas são questões importantes a se refletir.