Imagens e Geografia

A postagem de hoje é um extrato de minha dissertação de mestrado. Mais especificamente, o capítulo onde debato o uso das imagens na ciência geográfica, a partir dessa aproximação busquei fazer um gancho com as Histórias em Quadrinhos.

imagens e geografia

Relacionar imagens e textos, figuras e signos verbais, referências visuais e linguísticas. Atentar aos significados remetidos e perceber os sentidos produzidos. Rir, emocionar-se, entristecer-se, refletir ou identificar-se. São muitas as ações envolvidas na leitura das HQs, assim como também o são as maneiras como ela pode subjetivar as pessoas com sua conjunção de formas expressivas. A luz e a sombra, o uso das cores, as perspectivas do cenário, os distintos planos, o formato e o tamanho das letras (além das palavras formadas por estas e que dizem algo em algum idioma), o traçado empregado pelo artista na realização dos desenhos. Tratam-se, todos, de elementos que servem de meio para a transmissão das diversas mensagens e ideias a serem veiculadas. Nesse momento a pergunta é: apenas na linguagem dos Quadrinhos nos deparamos com essa forma híbrida de expressão?

 

A VISÃO ALÉM DO ALCANCE

 

Cosgrove fala de uma “inscrição geográfica”, ou seja, uma grafia sobre a superfície do planeta, mas que também, habitando as mentes, ganha, por vezes, forma em outros suportes físicos, tais como desenhos em uma folha de papel. No trabalho desse autor é dada grande importância para a discussão do que ele chama de “visões geográficas”, termo usado para se referir à imaginação humana a respeito do espaço geográfico, fazendo com que encontremos uma forte articulação entre paisagem, mapa, pictórico, imagem e visão.

Essa visão, para o autor, traz consigo outro sentido, diferente do normalmente usado e não abrange elementos óticos, mas subjetivos, que interpelam o mundo, formulando-o, reformulando-o ou pré-formulando-o. Dito de outra forma, diz respeito às concepções e ao que podemos chamar de “visão de mundo”.

O olho já não parece mais assim tão inocente e os mapas, talvez os instrumentos mais relacionáveis com a Geografia, passaram a trazer mais do que informações cognoscíveis, quantificáveis ou memorizáveis, pois se começa a perceber que outros aspectos da mente humana, mais imaginativos e subjetivos, entram em jogo na sua leitura e há tempos se lhes atribui a produção de significados e sentidos, através das imagens e iconografias apresentadas por eles.

A visão geográfica, ainda que habite os imaginários, também se converte, com o intuito de expressar-se, em formas físicas visíveis. Pode ser encontrada impressa nos mapas, desenhos, figuras, croquis, fotografias ou, inclusive, descrições escritas. Porém não se limitará a esses veículos e, como que buscando impor-se, se inscreverá no próprio espaço, por exemplo, nas simetricamente dispostas plantações de eucaliptos que recobrem parte do território do estado do Rio Grande do Sul, no traçado das ruas dos grandes centros urbanos e seus viadutos e avenidas, no design homogêneo dos condomínios, no isolamento dos bairros mais pobres, etc. Não existindo, necessariamente, uma ordem de início ou fim para esse percurso realizado pela inscrição geográfica, podendo ser da mente ao mundo ou vice-versa. Apresentando essa inscrição, então, duas dimensões: uma imaginativa e outra, material. Nesse estudo daremos uma maior atenção à primeira.

Em um estudo de Nola Gamalho, tratando das políticas urbanas adotadas em Porto Alegre nas décadas de 60 e 70, em conformidade com uma política nacional da época; é possível ver que a remoção de comunidades pobres das áreas centrais da cidade era (ainda é?) a principal atitude dos governantes. A imaginação dos administradores municipais considerava que, na “capital do futuro”, não caberiam mais os becos poeirentos e os casebres de madeira; estes deveriam ser substituídos por largas e compridas avenidas asfaltadas, viadutos, prédios e automóveis (Figura 1). As formas modernas da cidade ganharam expressão gráfica e, então, se concretizaram espacialmente, dando materialidade a um tipo de visão geográfica, que se sobrepõe às demais.

Segundo Cosgrove (2008) Platão faria referência a uma ordem oculta do mundo, a qual seria revelada pela Geometria, que significa, literalmente, a “medida da Terra”. Assim, podiam-se observar, através dos cálculos das sombras em diferentes horários e locais da superfície terrestre, os movimentos dos corpos celestes, mapeando uma ordem celestial sobre o espaço da Terra. Ordem visualizada, mais tarde, na retilínea paisagem humana de campos cultivados e fazendas. As obras de Ptolomeu – Almagesto e Geografia – serviriam de base para, milhares de anos depois, pensadores do Renascimento estabelecerem como sendo três as escalas do universo: a Cosmografia, que trataria das descrições e medições do universo (ainda influenciada pelo geocentrismo); a Geografia, preocupada com os fenômenos climáticos, as terras e mares do nosso planeta e a Corografia, que envolveria o estudo das regiões locais e paisagens.

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Figura 1 – Porto Alegre do Futuro. Fonte – Zero Hora, 1970.

 

 

Acredito não caber aqui um aprofundamento dessas escalas do universo, as trago apenas para chamar a atenção ao sufixo “grafia” acompanhando cada uma delas. Ou seja, discursos construídos através do uso de imagens, da leitura e obtenção destas, em detrimento das palavras. Podemos identificar, então, um chamado “imperativo gráfico” inerente às visões de mundo, manifestadas principalmente de maneira visual, implicando formas, as quais, captadas por nossos olhos, procuram nos dizer alguma coisa.

Portanto, esse imperativo conduz a manifestações visíveis, gráficas. Por exemplo, historicamente, uma visão de um universo criado de maneira ordenada e harmoniosa por um Deus-Pai Todo Poderoso, procurou ser expresso em linguagens como mapas, diagramas, globos, gravuras e pinturas. Assim, encontramos círculos e formas geométricas simples, simetricamente organizadas nas imagens produzidas por Hartmann Schedel, publicadas em Crônicas de Nuremberg de 1493, e na obra do artista português Francisco de Holanda, de meados do século XVI (Figuras 2 e 3, respectivamente). Também, graficamente, o professor de matemática do Colégio Jesuíta na Roma do século XVII, Athanasius Kircher, construiu um mapa simbólico do mundo visto pelos jesuítas, onde no interior de vários círculos concêntricos, temos o ícone de Jesus Cristo, IHS (Iesus Hominibus Salvatorem), emanando sua luz divina para cada província jesuítica por igual, numa retórica gráfica, sintonizada com uma visão particular desse universo.

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Figura 2 – Crônica de Nuremberg. Fonte – Luminarium: Encyclopedia Project, 2010.

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Figura 3 – Francisco de Holanda. Fonte – Bibliodissey, 2008.

Ainda para Cosgrove, o anseio ordenador da harmonia universal também estaria presente no trabalho de Bacon quando manifestou, na obra Novo Organum, sua particular leitura do mapa-múndi, argumentando não ser fruto de um acaso a conformação dos continentes apresentada nele, amplos e abertos para o norte do globo e pontiagudos em direção ao sul (se referia aos continentes americano e africano). Esse fato, acreditava, era parte de mais um desígnio do senhor, o criador de tudo.

Além de buscar o papel de testemunha ocular, apresentando uma interpretação de uma realidade, carregada de concepções, anseios, esperanças e crenças, a visão simétrica e ordenada do mundo também se impõe sobre o mesmo. De que outra maneira se poderia interpretar uma linha reta traçada sobre o mapa-múndi, como fez o Papa Alexandre VI em virtude do Tratado de Tordesilhas, separando as possessões coloniais entre os impérios português e espanhol? O que fez o Papa? À régua, riscou uma reta sobre um mapa, o qual nada mais era do que um pedaço de tecido pintado, porém, acreditou-se que essa mesma linha se materializaria igualmente retilínea sobre as terras e oceanos, como se fosse possível dividi-los fisicamente. Dessa forma, repartindo o mundo entre os que imaginavam possuir o direito primeiro sobre ele.

Na Figura 4, vemos os contornos retilíneos dos limites entre os estados africanos do norte, aparentando terem sido riscados com o auxílio de réguas, lembrando muito a visão geográfica presente no Tratado de Tordesilhas. Que tipo de imaginação motivaria, principalmente, ingleses e franceses a dividir de forma tão arbitrária um vasto pedaço de continente, traçando retas sobre o papel e separando povos, costumes e culturas, afetando, talvez, outras visões, outras imaginações?

Continuando a comentar as visões geográficas impressas em mapas, Cosgrove nos traz as discussões estratégicas, entre pensadores imperialistas dos Estados Unidos e Inglaterra, que envolveram o Oceano Pacífico no final do século XIX. Um desses, Halford J. Mackinder, britânico, defendendo a importância estratégica de uma massa de terras como a Eurásia, impenetrável a qualquer ataque naval, formulou, para dar seu argumento gráfico, um mapa onde se vê na posição central o dito continente, chamado aqui de “área pivô”, deixando as Américas espremidas nas margens e, junto com elas, o Oceano Pacífico. Diminuindo, portanto, o tamanho daquela área do globo que passava a ser foco crescente de atenção das nascentes pretensões imperialistas dos Estados Unidos, um provável concorrente para o império britânico.

Para reforçar a ideia da dificuldade em proclamar uma ordem para o mundo e impô-la, poderia dar o exemplo dos cálculos geodésicos, pois, mesmo estes, ainda que rigorosos, admitem a irregularidade da superfície terrestre. Sabendo que o planeta Terra não apresenta a forma de uma esfera perfeita, os estudiosos preferem usar o termo geoide. Seja por modelos matemáticos ou por representações gráficas de todo tipo, a visão de um mundo ordenado se manifesta, buscando fazer visível essa suposta ordem.

Perceber as visões geográficas inscritas ou grafadas, manifestas e/ou impostas ao mundo, seja da forma que for, sobre o suporte que for, é um passo importante na construção de um entendimento crítico próprio sobre o espaço e de como se insere a nossa participação nele.

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Figura 4 – O norte da África. Fonte – Movimento Missionário, 2009.

 

O MUNDO DAS IMAGENS E AS IMAGENS DO MUNDO

 

Discutimos até aqui, neste capítulo, como as visões geográficas se apresentam e se fazem visíveis pelas imagens. Porém, como ou por que essas imagens nos afetam? Por que lhes damos tanta importância? Procuro trazer outro aspecto dessa discussão envolvendo o olhar, a construção de conhecimento e a produção de significados.

Insistindo ainda na Geografia como uma grafia, creio, assim como Oliveira Jr, que nosso estudo sobre o mundo também se dá pelas imagens grafadas a respeito dele. Grafadas pelas cores, no caso das pinturas; pelos traços, no caso do desenho, ou pela luz, no caso das fotografias. Embora não seja possível afirmar qual linguagem nos aproxima mais da realidade, se as imagens ou se os textos escritos, muito do que acreditamos saber sobre esse “real” nos chegou pelas suas imagens, através de nossos olhos.

Na medida em que, desde a chamada “virada cultural”, avançam os campos de estudos focados nas práticas culturais, a importância dada à linguagem na construção de subjetividades nas sociedades vem crescendo. Essa passa a ser considerada como constituinte dos próprios objetos que denomina, os quais começam a existir para nós através dos nomes com os quais os chamamos. É certo que as coisas podem existir fora dos sistemas de classificação criados pelos humanos em suas relações sociais, ou, para dizer de outra forma, pelas culturas. Entretanto, é só dentro de um desses sistemas que elas passarão a fazer sentido.

Muitos estudos anteriores ao meu ampliaram as linguagens nas quais se considera que o conhecimento geográfico é produzido. Assim, o espaço geográfico pode ser estudado através dos desenhos, das fotografias, das pinturas, do cinema ou da televisão. Por que não acrescentar nessa lista as HQs? Se a linguagem nos “fala coisas”, mais do que “fala sobre coisas”, as imagens dos quadrinhos já não podem ser vistas como os inocentes receptáculos que transportam a realidade para diante de nossos olhos. Elas próprias são uma realidade.

Educar a maneira de ver também pode ser parte do ensinar Geografia e, para isso, não basta apenas um treinamento para distinguir os mínimos elementos espaciais. Para Oliveria Jr, é preciso construir um pensamento sobre o que é ver, pois é principalmente a partir do que vemos que conhecemos a realidade. Então, que realidade nos mostra as imagens?

Trago como exemplo, para uma possível resposta, a apresentação fotográfica de um colega[1]. Em uma das fotos do slide (Figura 5), era possível ver uma imagem na qual o verde das copas de árvores preponderava, ocupando mais da metade da composição. Depois, alguns postes de iluminação pública e placas publicitárias apareciam modestamente na sua parte inferior, uns mais altos e outros menos, como que se erguendo de um esconderijo para fazerem-se ver em meio ao verde dominante. A foto não deixava dúvidas a respeito de si. Ao vê-la, imaginei alguma localidade da serra, talvez. Porém, foi inevitável um sentimento de estranheza ao saber que ela foi tirada no centro da minha cidade, Porto Alegre. Pois, como Oliveira Jr coloca, a dúvida não está direcionada à imagem, mas à informação sobre ela.  Quem diria que em meu banco de dados imaginário o verde não estava reservado para a capital gaúcha?

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Figura 5 – Praça da Alfândega. Fonte – Registrada por Wagner Innocencio

Assim, temos as imagens como formadoras dos próprios lugares, considerando que nossa imaginação sobre eles é parte constituinte dos mesmos. Dar-se conta dessa dimensão e pensar como os lugares são mostrados no cinema, na fotografia, nos mapas, nas pinturas ou nas HQs é, também, pensar em Geografia. Da mesma maneira, é importante analisar esses suportes, não como portadores da própria realidade, que está além deles e por meio dos mesmos a vemos, mas sim, como construções humanas ou culturais que, afinal de contas, são. Mesmo a linguagem cartográfica, possuidora de credibilidade acadêmica e escolar, nada mais faz que “apresentar” outra versão do espaço diferentemente de “representar” algo, pois o que é visto por meio dela não pode ser estendido, fielmente, para além do que temos diante de nós.

Por que não poderíamos estudar Geografia fora da sala de aula? O mundo só é realmente conhecido por meio dos livros e mapas? E se pensarmos de outra forma? Por exemplo, do bairro Restinga, na zona sul, até o centro de Porto Alegre, uma pessoa pode passar, às vezes, mais de uma hora sentado em um banco de ônibus. Frequentemente, olhar pelas janelas é a principal distração dos passageiros do transporte público. Através delas, porções do espaço passam diante de nossos olhos e em cada parada prestamos um pouco mais de atenção em um ou outro detalhe. Por exemplo, a área verde que até semana passada estava ali e agora dá lugar a escavadeiras, caminhões e operários. Vemos também as casas pobres e as casas ricas, a quantidade de carros na avenida, uma carroça deixando o trânsito mais lento, as pessoas que, nas ruas, trabalham, pedem, protestam, etc. Como páginas de uma história ou slides de um projetor, se nos apresenta o espaço geográfico, cena por cena, não como apenas o conjunto da materialidade ao nosso redor, nem somente uma superfície inerte sobre a qual nos movemos. Qualquer noção que veja no espaço apenas um suporte para coisas estáticas, sem movimento, história ou inter-relações, está, por certo, em desconformidade com este estudo. É necessário considerar, tal qual Milton Santos, “o espaço geográfico como a soma indissolúvel de sistemas de objetos e sistemas de ações”. Ou seja, é uma forma de conceituar que articula o todo e as partes, compreendendo uma extensão de objetos em contiguidade e interação constante, conformando, dessa forma, uma visualidade. Assim, cabe ao Professor de Geografia a tarefa de educar o olho para uma leitura mais atenta dessa grafia espacial.

Coloco-me junto aos que acreditam na possibilidade de se apreender o conhecimento geográfico por meio das mais diversas linguagens e que, portanto, as imagens jogam importante papel. Podemos dizer que grafar nossa visão sobre o espaço é, de alguma forma, geo-grafar e isso é mais possível ainda se pensamos a prática da Geografia também como uma prática de leitura e interpretação do mundo. Os fatos geográficos podem ser como um livro cujas páginas estão sob nossos pés e ao nosso redor; estamos imersos neles. Em outras palavras, me refiro ao espaço geográfico, à maneira de Rego, como o texto da Geografia, que deve ser lido e interpretado em seu estudo.

[1] Durante o 4° Seminário do Programa de Pós-Graduação em Geografia/POSGEA-UFRGS: “Outra(s) Geografia(s): O Espaço e a sua Multiplicidade”. Relizado entre os dias 11 e 13 de maio de 2011, em Porto Alegre.

COSGROVE, Denis. Geographic and Cosmological Visions. In: _________. Geography & Vision: seeing, imagining and representing the world. Londre: I.B. Tauris, 2008. p. 13-48.

OLIVEIRA JR, Wenceslao M de; MANSUR, Mônica. Fotografias, Geografias e Escolas. Disponível em http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE_1364.pdf. Acesso em 26 out. 2012.

OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Grafar o Espaço, Educar os Olhos. Rumo a geografias menores. Pro-Posições, Campinas, v.20, n.3 (60), p. 17-28, set/dez. 2009.

OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Vídeos, Resistências e Geografias Menores: Linguagens e maneiras contemporâneas de resistir. Terra Livre, São Paulo, v.1, n.34, p. 161-176, jan/jun. 2010.

OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Fotografias Dizem do (nosso) Mundo: educação visual no encarte Megacidades, do jornal O Estado de São Paulo. In: TONINI, Ivaine Maria et al (Orgs.) O Ensino de Geografia e suas Composições Curriculares. Porto Alegre: UFRGS, 2011. p. 245-257.

O Espaço em Quadrinhos

Quadrinhos na internet

Como primeiro post desse blog, escolhi o artigo que enviei para o II Congreso Internacional Viñetas Serias, que teve lugar na cidade de Buenos Aires, no ano de 2012. Nele discuto um pouco a ligação entre o uso das imagens e o conhecimento geográfico, também trago um relato de prática de aula com a linhagem dos quadrinhos.

O Espaço em Quadrinhos

Este artigo se baseia em meu trabalho de mestrado, realizado no Programa de Pós- Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De maneira mais compacta, apresentarei as principais discussões levantadas em minha pesquisa e as experiências, nas quais me envolvi, com o uso das Histórias em Quadrinhos (HQs) na prática de ensino de Geografia.
Compreendendo que o conhecimento geográfico pode ser estudado em mais de uma linguagem, portanto, indo além do texto escrito, dos gráficos e, principalmente, dos mapas (Oliveira Jr, 2010), proponho, certo de que não sou o único a fazer isso, a utilização de um veículo cada vez mais presente no universo acadêmico e escolar: as HQs (Vergueiro; Ramos, 2009).
As imagens fazem parte da construção do discurso geográfico desde há muito tempo (Cosgrove, 2008), com o uso de desenhos, croquis, fotos, com a observação da paisagem, etc. O pictórico está presente de muitas maneiras no estudo da geografia, assim, educar os olhos se torna uma questão importante no ensino dessa disciplina, não apenas no sentido de adquirir uma capacidade de captar visualmente os detalhes do espaço geográfico, suas cores e formas, mas também no de trabalhar uma compreensão do que significa o ato de ver (Oliveira Jr, 2009), de como construímos conhecimento através dele e de como o que vemos ao nosso redor se enche um pouco de nós mesmos, de nossas concepções, de nossas imaginações. Dessa forma, ao se constituir de uma leitura de imagens, as HQs têm muito para contribuir.

Começando a História

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. Jorge Germano Sperb, na cidade de São Leopoldo, foi o local escolhido para o desenvolvimento de minhas propostas de atividades em aula. Neste texto apresentarei uma delas, que se deu da seguinte maneira: cada dupla de alunos procurariam imagens digitando palavras-chave ligadas ao conteúdo estudado em aula, como «capitalismo», «socialismo», «desenvolvimento»,
«subdesenvolvimento», «desigualdade», «livre-mercado», «pobreza», «riqueza» e

«consumismo». Com as imagens escolhidas, a elaboração de HQs, usando um programa de edição digital de imagens, seria o passo a seguir. A montagens teriam de uma ou até duas páginas. Estou ciente de que esse condicionamento para a busca no site teria implicação nos trabalhos, quiçá limitando sua criatividade, mas entendi ser necessário, para que os mesmos se focassem na tarefa. Sabemos como a disponibilidade de internet pode levar alguém à dispersão fácil e entendo que aí estava meu papel como professor, ou seja, tornar possível aos alunos o alcance de suas potencialidades de criação e aprendizagem.
A escolha das imagens era livre, dentro das sentenças propostas e de acordo com a história pensada por eles. Feito isso, cada dupla partiu para o uso do OpenOffice-Draw. Um programa onde é possível trabalhar com diferentes imagens, ordená-las, diminuí- las, aumentá-las, sobrepô-las, acrescentar textos em caixas ou em balões, etc. Trata-se de uma versão equivalente ao Publisher, o editor de imagens do Windows. O uso dos computadores não representou uma dificuldade para esses jovens: como era de se imaginar, todos já estavam habituados a comunicar-se pelas redes sociais da internet e a realizar seus trabalhos escolares através dessa ferramenta.
Nesta parte da atividade é que as imagens aleatórias do Google ganhariam um ordenamento ou uma imaginação, não sei se distinta do comum ou não. Para Goettert (2010: 96), «Imaginar o Mundo Moderno é imaginar um mundo feito margens, pedaços recortados de um espaço desigual, mas combinado». Assim, esse mundo recortado que o Google Imagens nos apresenta receberia uma combinação, através da capacidade que a linguagem dos quadrinhos possui de, por meio da imaginação do leitor ou do autor, dar sentido àquilo que, de maneira objetiva, se encontra fragmentado. E, de certa maneira, não apenas pela Internet vemos um mundo em partes. Segundo McLoud (1995: 62): «Nossos sentidos podem revelar um mundo fragmentado e incompleto. Mesmo uma pessoa muito viajada só pode ver partes do mundo durante uma existência. Nossa percepção da “realidade” é um ato de fé baseado em meros fragmentos». Ou seja, nossa capacidade de imaginar o que não está dado para os olhos pode ser trabalhada através da leitura das HQs, aproximando-a com a leitura geográfica.
Em todos os Quadrinhos analisados, aspectos diferentes do imaginário ligado ao capitalismo são observados. A ideia de ascensão social, de que somente com um elevado patamar de consumo se pode atingir a chamada felicidade, a noção de desenvolvimento e o conflito entre ricos e pobres e suas implicâncias espaciais são trabalhados pelos alunos, trazendo possibilidades para a análise geográfica. Assim, parte das construções que sustentam o discurso capitalista se faz presente nas atividades realizadas e podem, assim, ser interpeladas pelo professor. Trago dois desses trabalhos feitos pelos alunos, com suas ortografias originais.
Observando a primeira montagem, a da Figura 1, intitulada Crianças Com Fome!, vemos, no quadrinho inicial se vê a imagem de uma criança raquítica, disponibilizada pelo Google Imagens ao se digitar as palavras «pobreza» ou «subdesenvolvimento».
Parece difícil imaginar outra fala para aquela personagem além da lida no balão:

«Que vida ruim, não tenho os pais, moro na rua e tenho muita fome». A história continua no próximo quadrinho, com outra personagem (ou será a mesma?), referindo- se ao seu local de moradia, semelhante a um campo de refugiados, da seguinte maneira:
«Moro aqui neste lixo». No final ela manifesta um desejo, o seu balão de fala projeta-se para a parte inferior da folha, ao lado direito do último quadrinho e nele se pode ler:
«Queria viver assim»! Ao lado esquerdo desse balão se vê um quadrinho com a imagem de pessoas em um momento de lazer e relaxamento. Este se divide em dois, de um lado um casal imerso da cintura para baixo em um lago de águas cristalinas se alimenta de frutas tropicais e no horizonte se vê o que parece ser uma montanha coberta de vegetação, o que dá um aspecto paradisíaco à cena. Na outra metade do quadrinho, parecemos ver vizinhos realizando uma confraternização, com garrafas de cerveja sobre uma «mesa-boia», bem como um botijão de gás, que parece servir para cozinhar ou assar algo.
No último quadrinho, uma situação de desigualdade está retratada: enquanto os ricos viajam para um paraíso terrestre, os pobres aproveitam uma enchente para fazer uma festa na «piscina». A situação dos moradores do bairro na foto, ainda que de precariedade, parece ser melhor que a do menino pobre do quadrinho anterior, justificando a sua fala.
Na transição do segundo para o terceiro quadrinho há um grande salto espacial, um salto duplo, se considerarmos os dois espaços mostrados no mesmo quadrinho: a ilha paradisíaca e o subúrbio de uma grande cidade. Ambos representando uma vontade do menino de mudar de vida, de alcançar uma existência menos precária. O caminho a percorrer para chegar àquela mesa farta no lago parece ser longo e, para a história única mundial, não há outro, apenas o do sucesso financeiro, com viagens turísticas ao redor
do mundo. Fora desse caminho, só existe a miséria, a barbárie e a não-civilização. Assim, fecham-se as probabilidades e as proliferações de pensamentos, de concepção de outras formas de convívio entre as pessoas e dessas com o espaço geográfico (Oliveira Jr, 2010).

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 O próximo trabalho, nas Figuras 2 e 3, também abordará a questão da desigualdade social, porém trará outra dimensão dela, a do conflito social. Em Um
Mundo Diferente temos, no primeiro quadrinho, a imagem de um homem rico, com um charuto entre os dedos e rodeado por notas de dinheiro e outros símbolos de riqueza, que, em sua «fala», se gaba de sua situação: «Como é bom ser rico sem nenhum pobre para atrapalhar». No segundo quadrinho temos uma concentração de pessoas com bandeiras, sendo que as vermelhas estão em destaque, sugerindo uma manifestação de protesto. Lendo o quadro ao lado esquerdo, descobrimos quem é esse homem: «Então armaram uma greve para invadir a casa do enpresaria Carllos para acabar com a suas riqueza». Seguindo a leitura, temos uma transição que nos leva à cena de uma provável loja de televisores, repleta desses aparelhos, onde um dos personagens «fala», através de um balão: «Terremos que falar com nosso inpresario Carlos que não esta dando serto as vendas de TVs».
O resultado se vê no último quadrinho, com pessoas em uma espécie de «lixão», onde, de um balão partindo de uma delas, se pode ler: «Que merda esse inpresario tirou nossas casa e nos jogou no meio do lixo».
Do mesmo modo que em todas HQs de alunos apresentadas nesse trabalho, esta trará uma transição quadro a quadro conhecida, segundo McLoud (1995:71), como
«transição cena – a – cena», na qual somos levados, através de grandes cortes espaciais e temporais, de uma parte a outra da narrativa, cobrindo consideráveis distâncias. Assim, conhecemos a história de um empresário que, talvez pela greve de seus empregados, vê as vendas de suas lojas de televisão baixarem e com isso resolve investir no ramo imobiliário, comprando terras, nas quais pessoas pobres moravam, para a construção de casas de alto padrão.
 Figura 2

Figura 3

De que «mundo diferente» esta história nos fala? Sou assaltado pelo mesmo sentimento de Foucault ao contemplar “Isto não é um cachimbo”, de Magritte (Foucault,
2004). Mais uma vez, os olhos voltam-se para a HQ, a fim de procurar o que há de diferente nesse mundo. Vemos o conflito comumente estabelecido entre os possuidores de riquezas e os carentes materiais, cuja situação de pobreza sempre o coloca em desvantagem social, pois além de viverem em moradias precárias, não têm nem a certeza da sua permanência nas mesmas. O vai e vem dos mercados influenciando as ações humanas, como a compra de um terreno e o seu uso para construção de um bairro privado, ou a expulsão de famílias de alguma área e a sua consequente conversão em sem-tetos a inchar a população de rua e a pobreza nas cidades, ou, então, a diminuição do poder de compra dos salários dos trabalhadores, levando-os a decretar uma greve contra essa situação de concentração de riqueza. Até aí não parece haver diferenças significativas com o que se conhece sobre o mundo, normalmente.
O próximo quadrinho mostra o que parece ser uma favela vista de longe e o quadro ao lado esquerdo segue a narrativa textual: «Carlos quer conprar esta vila para construir casas chiques para sua revenda», dando a entender que o empresário Carlos decidiu mudar de ramo de negócios, do comércio de aparelhos eletrônicos para a especulação imobiliária.
Cada imagem usada na HQ, se tomada isolada das demais, possivelmente produzirá um sentido diferente do produzido quando em junção com as outras. A imagem de pessoas em um chamado lixão, grosso modo, não é mais do que isso. Porém, a maneira como ela foi introduzida na narrativa é que nos faz pensar em como essas pessoas foram levadas para lá e quão injusta é essa situação. Certamente, não seria necessário que uma imagem como esta fizesse parte de uma sequência de outras, ou viesse acompanhada de um balão de fala, para que o leitor a considerasse como a representação de uma injustiça social. Isso porque este já teria, provavelmente, sua carga de experiência sobre o mundo, sentidos já produzidos, visões já formadas,
fazendo-o chegar a essa conclusão, assim como outro alguém poderia chegar à outra qualquer. Não precisaria ser uma fotografia o objeto de contemplação; estou me referindo a todas as nossas experiências sensíveis, seja assistindo à televisão ou a um filme, seja caminhando pelo bairro, ou como passageiro de ônibus ou trem. Nossa visão, no sentido de concepção de mundo, estará o tempo todo ligando cada impulso visual com a nossa imaginação.
Um mundo diferente, ou um espaço geográfico, pode ser percebido por cada um de nós: o empresário rico, o pobre despejado, o professor, a professora, o estudante, o morador de um bairro operário ou de um condomínio de luxo. Vemos vários mundos e agimos, ou não, para viver nesses mundos como os imaginamos. Nossos conceitos mediam nossa relação com o que está ao nosso redor, o espaço em que vivemos, bem como espaços mais distantes. Usando outras palavras, Rego (2003: 280) se refere a essa leitura como uma hermenêutica instauradora:

Seria exatamente essa hermenêutica [interpretação geográfica], no sentido de que ela tem esse texto primeiro, que é o espaço geográfico, e que através de seus conceitos vai relacionando estes fatos [geográficos] […] torna-se [então] possível estabelecer inter-relações e nexos explicativos entre os fatos e, portanto, níveis de entendimento cada vez mais complexos, com capacidade de articulação entre o particular e o global.

Dessa forma, ao trabalhar as HQs os alunos realizaram uma leitura geográfica, articulando fatos como a existência de pessoas pobres, moradores de rua, pessoas ricas, condomínios de luxo, favelas, desigualdade social, manifestações populares, engarrafamentos de trânsito, etc. enxergando nexos expressados em seus trabalhos, como, por exemplo, o da luta individual por ascensão social em um mundo capitalista e a imposição de haver uma história única a ser seguida por todos.

Sugerindo Caminhos
Sendo as imagens um importante meio pelo qual conhecemos o mundo, trabalhar com elas no ensino de Geografia se faz necessário e a maneira particular com que a linguagem dos Quadrinhos comunica tem muito a acrescentar a essa empreitada. As HQs podem auxiliar na construção de um olhar capaz de distinguir e dar sentido à torrente de imagens que nos chegam todos os dias pela mídia, procurando, assim, a interpelação dos discursos e praticando, portanto, uma leitura que é mais do que a recitação de palavras escritas, porque:

Leitura não é só livro. Leitura é tudo. […] Assim, pode-se dizer que uma leitura sempre é o caminho para outras mais, numa espiral sem começo ou fim. Um outdoor leva a uma fotografia, que leva a um vídeo, que leva a um programa de televisão, que leva a um desenho animado, que leva a uma história em quadrinhos, que leva a um livro, que leva a um filme, que leva a um outdoor anunciando a estréia de um longa-metragem (Vergueiro; Ramos, 2009:40)

Minha experiência se deu de forma complementar a aula expositiva do professor titular da turma participante do estudo. Nesse sentido, então, o trabalho não visou à superação de um dito modo antigo ou tradicional, nem se apresentou como a salvação para professores cansados e alunos desinteressados. Os Quadrinhos podem servir de ferramenta auxiliar para o conteúdo de Geografia, mas avançar desse uso puramente utilitarista para a construção de uma aula mais criativa e instigante me parece de grande interesse.
Sobre os Quadrinhos em sala de aula, Vergueiro e Ramos (2009, p.9) colocam: “Houve um tempo, não tão distante assim, em que levar revistas em quadrinhos para a sala de aula era motivo de repreensão por parte dos professores”. Se no passado as HQs eram incompatíveis com o ambiente escolar, essa realidade, como vimos, tem mudado.
Referências Bibliográficas

COSGROVE, D. (2008): Geographic and Cosmological Visions, Londres, Tauris.
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