Biomas brasileiros

Desde novembro do ano passado até o carnaval mais ou menos, participei do chamado time de autores Nova Escola. A Nova Escola era aquela revista especializada em educação, muito conhecida no meio dos professores, onde encontrávamos artigos sobre a área, relatos de atividades pedagógicas, planos de aula, etc. A revista no formato físico não existe mais, mas seu conteúdo segue atualizado na internet.

Até maio desse ano, estará disponível no site a Nova Escola centenas de propostas planos de aula, alinhados à nova Base Nacional Comum Curricular. Os planos foram elaborados tendo em conta metodologias ativas para serem trabalhadas em sala de aula, levando em consideração a realidade de cada localidade. Trata-se de uma ótima opção para professores e professoras de todo o país.

Participei do projeto elaborando dez planos de aula para o sétimo ano, sobre biomas brasileiros. Aqui você pode encontrar links para os dois primeiros planos, com o tempo disponibilizarei o resto.

A Floresta Amazônica.

A Mata Atlântica.

vegetação

FORJA DE ESPAÇOS – A Geografia de um videogame

Videogames e ensino

Neste post abordo o uso de outra linguagem no ensino de Geografia. Assim como, em décadas passadas, as Histórias em Quadrinhos eram vistas com desconfiança nos meios acadêmicos e escolares. Acredito que hoje esse papel cabe aos videogames. Porém, esse quadro parece começar a mudar.

A contribuição dos jogos eletrônicos para o ensino é um tema crescente no meio acadêmico, com uma rápida pesquisa pela internet, já é possível encontrar alguns trabalhos dedicados a esse assunto. Existem experiências do uso do jogo simcity em aulas de planejamento urbano1 no Brasil, ou do jogo Civilization como ferramenta para o ensino de História2 nos Estados Unidos, para ficar só com dois exemplos. Me parece que essa é uma discussão que já vem tarde. Quem é professor percebe facilmente o fascínio que essas mídias exercem sobre nossa juventude e, nesses tempos em que a tecnologia é cada vez mais acessível e portátil, a sala de aula acaba se tornando, também, lugar para a prática desses jogos, gerando, assim, mais uma fonte de conflitos entre professor e alunos. O primeiro, interessado em exercer seu trabalho e desenvolver seu conteúdo programático, o segundo, distraído por uma atividade mais dinâmica e entretenedora.

Acredito que devemos voltar nossa atenção para essa realidade e procurar entender como podemos tirar proveito dela. São cada vez mais variadas as plataformas e modos de jogar os videogames. No celular, nos computadores domésticos, em consoles, comprando jogos gravados em mídias, baixando os jogos ou, ainda, jogando on-line. Essa última forma de jogar têm crescido muito nos últimos tempos. Em uma rápida busca pela internet se encontra vários sites destinados a esse fim, alguns se dedicam a apenas um tipo de jogo, outros disponibilizam diferentes jogos. Alguns desses jogos, penso terem potencial para apoiar o ensino de Geografia e possuem a facilidade de poderem ser acessados em qualquer computador que tenha conexão com a internet, portanto, se essa for a realidade na sua escola, você pode desenvolver alguma atividade nesse sentido.

Alguns sites disponibilizam jogos diretamente envolvidos com o conteúdo de Geografia, como jogos-geograficos.com ou geografia7.com. Neles, se pode encontrar atividades com mapas, brincadeiras para memorizar localização de países e bandeiras, jogos para conhecer orientação pelos pontos cardeais e colaterais, localização com coordenadas geográficas, etc. Para se fazer uma atividade lúdica, para momentos mais descontraídos, são uma boa dica. Outros sites podem servir de forma mais indireta, digamos. São aqueles com jogos do tipo estratégicos, alguns títulos seriam Tribal Wars, Clash of Kings, Game of War, etc. Em um desses jogos, me detenho, atualmente, com mais atenção, trata-se do jogo Forge of Empires, ou FoE para os mais íntimos. Tenho jogado esse jogo e analisado suas potencialidades para o ensino, além de algumas ideias que identifico fazerem parte do discurso do jogo. No entanto, ficarei devendo um relato de experiência em sala de aula com essa ferramenta, espero o mais breve possível realizar essa empreitada.

Forjando espaços

Acredito que esse jogo trás duas abordagens. A primeira delas pode ter uma relação, digamos, mais direta com o conteúdo geográfico. Como em muitos jogos do tipo, o FoE consiste na construção de um império, desde uma pequena vila da idade da pedra (o jogo é dividido em etapas baseadas em uma linha histórica criada por ele) até uma grande cidade do futuro (a última etapa do jogo é o que ele chama de “futuro ártico). Durante o desenvolvimento da sua cidade, o jogador tem que organizar seus prédios e caminhos. Caso um prédio fique longe de uma estrada, ele não funcionará, quer dizer, não produzirá nem moedas, nem mantimentos ou mercadorias. Portanto, é importante pensar como as coisas ficarão dispostas no espaço antes de começar a construir. Lembrei de Milton Santos e da interação entre os “fixos” e “fluxos” que fazem parte do espaço geográfico. As estradas escoando a produção, abastecendo as cidades, transformando a paisagem. Essa dimensão do jogo pode ser bem ilustrativa dessa discussão. A única coisa a se observar em relação a isso é que, para o jogo, os recursos são inesgotáveis, as pedreiras sempre produzirão pedras eternamente, as madeireiras também e etc. O ambiente do jogo não sofre alterações quanto a esse aspecto, mesmo porque isso não deve ser essa a preocupação dos idealizadores do FoE. Uma coisa importante para o jogador são as casas residenciais, elas fornecem moedas, com as quais ele pode pagar os custos da produção, o treinamento de soldados, etc. Essas casas nunca cessam seu fornecimento, as da idade da pedra produzem uma certa quantidade, que vai aumentando conforme se avança nas etapas (eras) do jogo. O que exemplifica, de certo modo, o que representamos nós, em nossas casas, para quem governa ou administra as cidades, somos fornecedores de moedas, mas através dos impostos. A diferença é que nossa capacidade de fornecer não é ilimitada, ainda que governantes pensem ao contrário. Olhando por esse ponto-de-vista, no FoE subjaz a mesma ideia que é possível ser percebida no modo de atuar do sistema capitalista, a de que a natureza, considerada como fonte de recursos, é inesgotável. Aí entra a segunda abordagem.

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Uma cidade dos “Finais da Idade Média”, uma das eras do FoE.

A lógica do jogo é implacável. Você tem que crescer, aumentar sua cidades, construir mais prédios, avançar nas pesquisas de tecnologias, avançar nas eras, faz parte da sua jogabilidade. Não é possível permanecer numa era, plantar árvores, etc. Quando comecei a jogar, queria dar ênfase para os prédios de lazer, os jardins e monumentos, mas para se continuar jogando, é preciso ter mais habitantes, então vem a necessidade de construir mais residências, ampliar a área da cidade e assim por diante. O jogo como um todo pode ser uma metáfora da sociedade capitalista industrial e o seu chamado “desenvolvimento”, que muitas vezes é considerada a única forma de expressar a história da humanidade. A autora britânica Doreen Massey, sobre a qual já escrevi aqui no blog (para ler, clique aqui), argumenta que essa proposta de desenvolvimento industrial capitalista se coloca como a única opção existente de futuro. Faz com que algumas partes do mundo estejam “atrasadas” e outras “avançadas” em relação a esse chamado desenvolvimento. Quer dizer, assim como no jogo, o futuro está fechado, só há um horizonte que é o do crescimento econômico, expansão industrial, das cidades. Analisando um outro videogame, Massarani fala de outro aspecto desses jogos, é o “Evolucionismo cultural”. Uma abordagem antropológico que não é mais vigente nos mais acadêmicos, mas que continua viva no imaginário das pessoas. É aquela que defende que a humanidade segue uma mesma linha “evolucionária”, dos ditos povos “selvagens” e “tribais” até as modernas sociedades tecnológicas, não deixando margem para outros caminhos. Acredito que essas problematizações todas auxiliriam em uma possível discussão em sala de aula.

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Cidade da Idade do Ferro, outra era FoE.

Considerações finais

Abordei alguns aspectos desse jogo, mas de modo algum esse assunto está esgotado, restando ainda muito a ser discutido e explorado. Fica como dica o cuidado para não levar os alunos a um possível vício pelo jogo, caso se trabalhe com ele em aula. Pois é muito fácil cair nessa tentação, eu ficava pensando na minha produção ou no treinamento dos soldados, enquanto não estava jogando. Além disso, se você quiser avançar mais rápido no jogo, queimando etapas, os adiministradores do FoE disponibilizam isso mediante pagamento, através do uso de cartão crédito. Mas é possível jogar o jogo todo sem gastar dinheiro, basta ter paciência.

Acredito que os videogames hoje talvez tenham substituido o papel que os Quadrinhos exerciam na juventude no passado, por isso é preciso mais atenção de pesquisadores e educadores sobre essa linguagem. É necessário não só pesquisar sua utilização como ferramenta para auxiliar na aprendizagem dos alunos, mas também os discursos inerentes em cada uma dessas linguagens.

Migrações em quadrinhos

Quadrinhos na Internet

Neste post a ênfase vai para os trabalhos de alunos. Realizados durante o ano de 2014, em uma turma de sétimo ano de uma escola municipal de Gravataí/RS, onde trabalhei. Tratam-se de Histórias em Quadrinhos onde os estudantes procuraram expressar sua compreensão sobre o conteúdo trabalhado em aula, no caso, migrações populacionais. Aqui eles tiveram total liberdade para se expressarem. Cada um abordou o tema de um ângulo diferente. Alguns viram vantagens em sair de sua terra natal para outro lugar, outros viram desvantagens. Alguns representaram a seca e a fome como motivos para o deslocamento das pessoas, outros escolheram a violência. O importante foi deixar que expusessem suas visões a cerca do assunto, o que permitiu um aprofundamento da discussão em sala de aula. Abaixo, você pode conhecer alguns dos trabalhos, divirtam-se.

 

Conheça também minha webcomic.

Meu novo livro.

Imagens e Geografia

A postagem de hoje é um extrato de minha dissertação de mestrado. Mais especificamente, o capítulo onde debato o uso das imagens na ciência geográfica, a partir dessa aproximação busquei fazer um gancho com as Histórias em Quadrinhos.

imagens e geografia

Relacionar imagens e textos, figuras e signos verbais, referências visuais e linguísticas. Atentar aos significados remetidos e perceber os sentidos produzidos. Rir, emocionar-se, entristecer-se, refletir ou identificar-se. São muitas as ações envolvidas na leitura das HQs, assim como também o são as maneiras como ela pode subjetivar as pessoas com sua conjunção de formas expressivas. A luz e a sombra, o uso das cores, as perspectivas do cenário, os distintos planos, o formato e o tamanho das letras (além das palavras formadas por estas e que dizem algo em algum idioma), o traçado empregado pelo artista na realização dos desenhos. Tratam-se, todos, de elementos que servem de meio para a transmissão das diversas mensagens e ideias a serem veiculadas. Nesse momento a pergunta é: apenas na linguagem dos Quadrinhos nos deparamos com essa forma híbrida de expressão?

 

A VISÃO ALÉM DO ALCANCE

 

Cosgrove fala de uma “inscrição geográfica”, ou seja, uma grafia sobre a superfície do planeta, mas que também, habitando as mentes, ganha, por vezes, forma em outros suportes físicos, tais como desenhos em uma folha de papel. No trabalho desse autor é dada grande importância para a discussão do que ele chama de “visões geográficas”, termo usado para se referir à imaginação humana a respeito do espaço geográfico, fazendo com que encontremos uma forte articulação entre paisagem, mapa, pictórico, imagem e visão.

Essa visão, para o autor, traz consigo outro sentido, diferente do normalmente usado e não abrange elementos óticos, mas subjetivos, que interpelam o mundo, formulando-o, reformulando-o ou pré-formulando-o. Dito de outra forma, diz respeito às concepções e ao que podemos chamar de “visão de mundo”.

O olho já não parece mais assim tão inocente e os mapas, talvez os instrumentos mais relacionáveis com a Geografia, passaram a trazer mais do que informações cognoscíveis, quantificáveis ou memorizáveis, pois se começa a perceber que outros aspectos da mente humana, mais imaginativos e subjetivos, entram em jogo na sua leitura e há tempos se lhes atribui a produção de significados e sentidos, através das imagens e iconografias apresentadas por eles.

A visão geográfica, ainda que habite os imaginários, também se converte, com o intuito de expressar-se, em formas físicas visíveis. Pode ser encontrada impressa nos mapas, desenhos, figuras, croquis, fotografias ou, inclusive, descrições escritas. Porém não se limitará a esses veículos e, como que buscando impor-se, se inscreverá no próprio espaço, por exemplo, nas simetricamente dispostas plantações de eucaliptos que recobrem parte do território do estado do Rio Grande do Sul, no traçado das ruas dos grandes centros urbanos e seus viadutos e avenidas, no design homogêneo dos condomínios, no isolamento dos bairros mais pobres, etc. Não existindo, necessariamente, uma ordem de início ou fim para esse percurso realizado pela inscrição geográfica, podendo ser da mente ao mundo ou vice-versa. Apresentando essa inscrição, então, duas dimensões: uma imaginativa e outra, material. Nesse estudo daremos uma maior atenção à primeira.

Em um estudo de Nola Gamalho, tratando das políticas urbanas adotadas em Porto Alegre nas décadas de 60 e 70, em conformidade com uma política nacional da época; é possível ver que a remoção de comunidades pobres das áreas centrais da cidade era (ainda é?) a principal atitude dos governantes. A imaginação dos administradores municipais considerava que, na “capital do futuro”, não caberiam mais os becos poeirentos e os casebres de madeira; estes deveriam ser substituídos por largas e compridas avenidas asfaltadas, viadutos, prédios e automóveis (Figura 1). As formas modernas da cidade ganharam expressão gráfica e, então, se concretizaram espacialmente, dando materialidade a um tipo de visão geográfica, que se sobrepõe às demais.

Segundo Cosgrove (2008) Platão faria referência a uma ordem oculta do mundo, a qual seria revelada pela Geometria, que significa, literalmente, a “medida da Terra”. Assim, podiam-se observar, através dos cálculos das sombras em diferentes horários e locais da superfície terrestre, os movimentos dos corpos celestes, mapeando uma ordem celestial sobre o espaço da Terra. Ordem visualizada, mais tarde, na retilínea paisagem humana de campos cultivados e fazendas. As obras de Ptolomeu – Almagesto e Geografia – serviriam de base para, milhares de anos depois, pensadores do Renascimento estabelecerem como sendo três as escalas do universo: a Cosmografia, que trataria das descrições e medições do universo (ainda influenciada pelo geocentrismo); a Geografia, preocupada com os fenômenos climáticos, as terras e mares do nosso planeta e a Corografia, que envolveria o estudo das regiões locais e paisagens.

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Figura 1 – Porto Alegre do Futuro. Fonte – Zero Hora, 1970.

 

 

Acredito não caber aqui um aprofundamento dessas escalas do universo, as trago apenas para chamar a atenção ao sufixo “grafia” acompanhando cada uma delas. Ou seja, discursos construídos através do uso de imagens, da leitura e obtenção destas, em detrimento das palavras. Podemos identificar, então, um chamado “imperativo gráfico” inerente às visões de mundo, manifestadas principalmente de maneira visual, implicando formas, as quais, captadas por nossos olhos, procuram nos dizer alguma coisa.

Portanto, esse imperativo conduz a manifestações visíveis, gráficas. Por exemplo, historicamente, uma visão de um universo criado de maneira ordenada e harmoniosa por um Deus-Pai Todo Poderoso, procurou ser expresso em linguagens como mapas, diagramas, globos, gravuras e pinturas. Assim, encontramos círculos e formas geométricas simples, simetricamente organizadas nas imagens produzidas por Hartmann Schedel, publicadas em Crônicas de Nuremberg de 1493, e na obra do artista português Francisco de Holanda, de meados do século XVI (Figuras 2 e 3, respectivamente). Também, graficamente, o professor de matemática do Colégio Jesuíta na Roma do século XVII, Athanasius Kircher, construiu um mapa simbólico do mundo visto pelos jesuítas, onde no interior de vários círculos concêntricos, temos o ícone de Jesus Cristo, IHS (Iesus Hominibus Salvatorem), emanando sua luz divina para cada província jesuítica por igual, numa retórica gráfica, sintonizada com uma visão particular desse universo.

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Figura 2 – Crônica de Nuremberg. Fonte – Luminarium: Encyclopedia Project, 2010.

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Figura 3 – Francisco de Holanda. Fonte – Bibliodissey, 2008.

Ainda para Cosgrove, o anseio ordenador da harmonia universal também estaria presente no trabalho de Bacon quando manifestou, na obra Novo Organum, sua particular leitura do mapa-múndi, argumentando não ser fruto de um acaso a conformação dos continentes apresentada nele, amplos e abertos para o norte do globo e pontiagudos em direção ao sul (se referia aos continentes americano e africano). Esse fato, acreditava, era parte de mais um desígnio do senhor, o criador de tudo.

Além de buscar o papel de testemunha ocular, apresentando uma interpretação de uma realidade, carregada de concepções, anseios, esperanças e crenças, a visão simétrica e ordenada do mundo também se impõe sobre o mesmo. De que outra maneira se poderia interpretar uma linha reta traçada sobre o mapa-múndi, como fez o Papa Alexandre VI em virtude do Tratado de Tordesilhas, separando as possessões coloniais entre os impérios português e espanhol? O que fez o Papa? À régua, riscou uma reta sobre um mapa, o qual nada mais era do que um pedaço de tecido pintado, porém, acreditou-se que essa mesma linha se materializaria igualmente retilínea sobre as terras e oceanos, como se fosse possível dividi-los fisicamente. Dessa forma, repartindo o mundo entre os que imaginavam possuir o direito primeiro sobre ele.

Na Figura 4, vemos os contornos retilíneos dos limites entre os estados africanos do norte, aparentando terem sido riscados com o auxílio de réguas, lembrando muito a visão geográfica presente no Tratado de Tordesilhas. Que tipo de imaginação motivaria, principalmente, ingleses e franceses a dividir de forma tão arbitrária um vasto pedaço de continente, traçando retas sobre o papel e separando povos, costumes e culturas, afetando, talvez, outras visões, outras imaginações?

Continuando a comentar as visões geográficas impressas em mapas, Cosgrove nos traz as discussões estratégicas, entre pensadores imperialistas dos Estados Unidos e Inglaterra, que envolveram o Oceano Pacífico no final do século XIX. Um desses, Halford J. Mackinder, britânico, defendendo a importância estratégica de uma massa de terras como a Eurásia, impenetrável a qualquer ataque naval, formulou, para dar seu argumento gráfico, um mapa onde se vê na posição central o dito continente, chamado aqui de “área pivô”, deixando as Américas espremidas nas margens e, junto com elas, o Oceano Pacífico. Diminuindo, portanto, o tamanho daquela área do globo que passava a ser foco crescente de atenção das nascentes pretensões imperialistas dos Estados Unidos, um provável concorrente para o império britânico.

Para reforçar a ideia da dificuldade em proclamar uma ordem para o mundo e impô-la, poderia dar o exemplo dos cálculos geodésicos, pois, mesmo estes, ainda que rigorosos, admitem a irregularidade da superfície terrestre. Sabendo que o planeta Terra não apresenta a forma de uma esfera perfeita, os estudiosos preferem usar o termo geoide. Seja por modelos matemáticos ou por representações gráficas de todo tipo, a visão de um mundo ordenado se manifesta, buscando fazer visível essa suposta ordem.

Perceber as visões geográficas inscritas ou grafadas, manifestas e/ou impostas ao mundo, seja da forma que for, sobre o suporte que for, é um passo importante na construção de um entendimento crítico próprio sobre o espaço e de como se insere a nossa participação nele.

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Figura 4 – O norte da África. Fonte – Movimento Missionário, 2009.

 

O MUNDO DAS IMAGENS E AS IMAGENS DO MUNDO

 

Discutimos até aqui, neste capítulo, como as visões geográficas se apresentam e se fazem visíveis pelas imagens. Porém, como ou por que essas imagens nos afetam? Por que lhes damos tanta importância? Procuro trazer outro aspecto dessa discussão envolvendo o olhar, a construção de conhecimento e a produção de significados.

Insistindo ainda na Geografia como uma grafia, creio, assim como Oliveira Jr, que nosso estudo sobre o mundo também se dá pelas imagens grafadas a respeito dele. Grafadas pelas cores, no caso das pinturas; pelos traços, no caso do desenho, ou pela luz, no caso das fotografias. Embora não seja possível afirmar qual linguagem nos aproxima mais da realidade, se as imagens ou se os textos escritos, muito do que acreditamos saber sobre esse “real” nos chegou pelas suas imagens, através de nossos olhos.

Na medida em que, desde a chamada “virada cultural”, avançam os campos de estudos focados nas práticas culturais, a importância dada à linguagem na construção de subjetividades nas sociedades vem crescendo. Essa passa a ser considerada como constituinte dos próprios objetos que denomina, os quais começam a existir para nós através dos nomes com os quais os chamamos. É certo que as coisas podem existir fora dos sistemas de classificação criados pelos humanos em suas relações sociais, ou, para dizer de outra forma, pelas culturas. Entretanto, é só dentro de um desses sistemas que elas passarão a fazer sentido.

Muitos estudos anteriores ao meu ampliaram as linguagens nas quais se considera que o conhecimento geográfico é produzido. Assim, o espaço geográfico pode ser estudado através dos desenhos, das fotografias, das pinturas, do cinema ou da televisão. Por que não acrescentar nessa lista as HQs? Se a linguagem nos “fala coisas”, mais do que “fala sobre coisas”, as imagens dos quadrinhos já não podem ser vistas como os inocentes receptáculos que transportam a realidade para diante de nossos olhos. Elas próprias são uma realidade.

Educar a maneira de ver também pode ser parte do ensinar Geografia e, para isso, não basta apenas um treinamento para distinguir os mínimos elementos espaciais. Para Oliveria Jr, é preciso construir um pensamento sobre o que é ver, pois é principalmente a partir do que vemos que conhecemos a realidade. Então, que realidade nos mostra as imagens?

Trago como exemplo, para uma possível resposta, a apresentação fotográfica de um colega[1]. Em uma das fotos do slide (Figura 5), era possível ver uma imagem na qual o verde das copas de árvores preponderava, ocupando mais da metade da composição. Depois, alguns postes de iluminação pública e placas publicitárias apareciam modestamente na sua parte inferior, uns mais altos e outros menos, como que se erguendo de um esconderijo para fazerem-se ver em meio ao verde dominante. A foto não deixava dúvidas a respeito de si. Ao vê-la, imaginei alguma localidade da serra, talvez. Porém, foi inevitável um sentimento de estranheza ao saber que ela foi tirada no centro da minha cidade, Porto Alegre. Pois, como Oliveira Jr coloca, a dúvida não está direcionada à imagem, mas à informação sobre ela.  Quem diria que em meu banco de dados imaginário o verde não estava reservado para a capital gaúcha?

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Figura 5 – Praça da Alfândega. Fonte – Registrada por Wagner Innocencio

Assim, temos as imagens como formadoras dos próprios lugares, considerando que nossa imaginação sobre eles é parte constituinte dos mesmos. Dar-se conta dessa dimensão e pensar como os lugares são mostrados no cinema, na fotografia, nos mapas, nas pinturas ou nas HQs é, também, pensar em Geografia. Da mesma maneira, é importante analisar esses suportes, não como portadores da própria realidade, que está além deles e por meio dos mesmos a vemos, mas sim, como construções humanas ou culturais que, afinal de contas, são. Mesmo a linguagem cartográfica, possuidora de credibilidade acadêmica e escolar, nada mais faz que “apresentar” outra versão do espaço diferentemente de “representar” algo, pois o que é visto por meio dela não pode ser estendido, fielmente, para além do que temos diante de nós.

Por que não poderíamos estudar Geografia fora da sala de aula? O mundo só é realmente conhecido por meio dos livros e mapas? E se pensarmos de outra forma? Por exemplo, do bairro Restinga, na zona sul, até o centro de Porto Alegre, uma pessoa pode passar, às vezes, mais de uma hora sentado em um banco de ônibus. Frequentemente, olhar pelas janelas é a principal distração dos passageiros do transporte público. Através delas, porções do espaço passam diante de nossos olhos e em cada parada prestamos um pouco mais de atenção em um ou outro detalhe. Por exemplo, a área verde que até semana passada estava ali e agora dá lugar a escavadeiras, caminhões e operários. Vemos também as casas pobres e as casas ricas, a quantidade de carros na avenida, uma carroça deixando o trânsito mais lento, as pessoas que, nas ruas, trabalham, pedem, protestam, etc. Como páginas de uma história ou slides de um projetor, se nos apresenta o espaço geográfico, cena por cena, não como apenas o conjunto da materialidade ao nosso redor, nem somente uma superfície inerte sobre a qual nos movemos. Qualquer noção que veja no espaço apenas um suporte para coisas estáticas, sem movimento, história ou inter-relações, está, por certo, em desconformidade com este estudo. É necessário considerar, tal qual Milton Santos, “o espaço geográfico como a soma indissolúvel de sistemas de objetos e sistemas de ações”. Ou seja, é uma forma de conceituar que articula o todo e as partes, compreendendo uma extensão de objetos em contiguidade e interação constante, conformando, dessa forma, uma visualidade. Assim, cabe ao Professor de Geografia a tarefa de educar o olho para uma leitura mais atenta dessa grafia espacial.

Coloco-me junto aos que acreditam na possibilidade de se apreender o conhecimento geográfico por meio das mais diversas linguagens e que, portanto, as imagens jogam importante papel. Podemos dizer que grafar nossa visão sobre o espaço é, de alguma forma, geo-grafar e isso é mais possível ainda se pensamos a prática da Geografia também como uma prática de leitura e interpretação do mundo. Os fatos geográficos podem ser como um livro cujas páginas estão sob nossos pés e ao nosso redor; estamos imersos neles. Em outras palavras, me refiro ao espaço geográfico, à maneira de Rego, como o texto da Geografia, que deve ser lido e interpretado em seu estudo.

[1] Durante o 4° Seminário do Programa de Pós-Graduação em Geografia/POSGEA-UFRGS: “Outra(s) Geografia(s): O Espaço e a sua Multiplicidade”. Relizado entre os dias 11 e 13 de maio de 2011, em Porto Alegre.

COSGROVE, Denis. Geographic and Cosmological Visions. In: _________. Geography & Vision: seeing, imagining and representing the world. Londre: I.B. Tauris, 2008. p. 13-48.

OLIVEIRA JR, Wenceslao M de; MANSUR, Mônica. Fotografias, Geografias e Escolas. Disponível em http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE_1364.pdf. Acesso em 26 out. 2012.

OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Grafar o Espaço, Educar os Olhos. Rumo a geografias menores. Pro-Posições, Campinas, v.20, n.3 (60), p. 17-28, set/dez. 2009.

OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Vídeos, Resistências e Geografias Menores: Linguagens e maneiras contemporâneas de resistir. Terra Livre, São Paulo, v.1, n.34, p. 161-176, jan/jun. 2010.

OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Fotografias Dizem do (nosso) Mundo: educação visual no encarte Megacidades, do jornal O Estado de São Paulo. In: TONINI, Ivaine Maria et al (Orgs.) O Ensino de Geografia e suas Composições Curriculares. Porto Alegre: UFRGS, 2011. p. 245-257.

As Transformações do Espaço Geográfico na sala de aula através das histórias em quadrinhos

O ensino de Geografia praticado nas escolas muitas vezes se caracteriza por uma coleção de informações a serem repassadas aos alunos. Não é raro nos depararmos com professores aplicando provas que exigem do aluno saber quais são os principais recursos minerais do Canadá ou os produtos que fazem parte da pauta de exportações do México, etc.

Nesses casos, que tipo de Geografia se está trabalhando em aula e que conhecimento se busca atingir com essas estratégias? Certamente, é necessária a memorização de alguns elementos chave para se praticar uma leitura geográfica, por

exemplo, alguns países de cada continente, os nomes de alguns organismos internacionais, as maiores cidades brasileiras, as características de algumas regiões do mundo, entre outras coisas. Mas, parece que a chamada “decoreba” ainda ganha muito destaque nas escolas brasileiras. Ao mesmo tempo, se discute, e muitos fazem acordo, quanto a importância de um ensino crítico, menos dedicado à memorização e mais à reflexão, porém, quantas são as propostas existentes para a prática desse ensino?

Apresento uma tentativa, entre tantas outras, de contribuir com o desafio que é a elaboração de práticas de ensino de Geografia que estimulem a criatividade e o exercício do pensamento dos alunos. Para isso, trago o exemplo de uma atividade, na qual fiz uso da linguagem das Histórias em Quadrinhos (HQs), para observar e discutir, em sala de aula, as transformações que ocorrem no espaço geográfico.

QU AL ENSINO DE GEOGRAFI A?

Que objetivo busco atingir com minhas práticas em sala de aula? Essa pergunta pode não ser tão óbvia como parece. É relativamente fácil para um professor ou professora cair na armadilha do cotidiano, e fazer-se esse questionamento todos os dias pode ser um meio de se prevenir. Para quem trabalha em uma escola pública brasileira, normalmente vai se deparar com uma quantidade considerável de turmas e estudantes. Entrar e sair de uma sala de aula e outra, elaborar provas e trabalhos, fechar notas, preencher cadernos de chamada, entre outras coisas, podem nos levar a realizar nosso trabalho de forma mecânica, automatizada. Além disso, não são todas as escolas que oferecem um tempo para “parar para respirar” e conversar sobre o trabalho que está sendo feito, assim, o risco de sermos apanhados pelo ritmo do dia-dia escolar é grande.

Portanto, quando elaboro uma atividade para meus alunos e alunas, primeiro penso em onde quero chegar com ela. Ainda que, num primeiro momento, seja grande a chance de não atingir esse objetivo programado, penso ser necessário fazer essa reflexão, pois, a experiência pode nos ajudar a aperfeiçoar nossas práticas, prevenindo um possível “estancamento” delas. Para quem se encontra na mesma situação que a minha, professor do ensino fundamental em uma escola pública brasileira, acredito que, devido às poucas brechas existentes dentro da rotina escolar para a prática do pensamento, pode ser válido refletir sobre que tipo de ensino não quero realizar. Por exemplo, não quero privilegiar demasiadamente a capacidade de memorização e resignação (alunos calados me observado) em minhas atividades. Prefiro alunos mentalmente ativos, pensando e criando, do que muito bem comportados me ouvindo, sem refletir em nada do que está sendo trabalhado.

Dessa forma, propor atividades que estimulem a problematização

e análise do mundo me parece necessário para quem se aproxima dessa ideia de ensino de Geografia. Ajudar a construir um conceito não é o mesmo que dar a explicação pronta para ser digerida, memorizada e repetida em uma possível prova, como argumenta Costella (2013, p.65):

Construir o conhecimento geográfico é diferente

de estudar Geografia de forma enciclopédica. Entender

os acontecimentos refletindo sobre os fatos

não significa memorizar os dados e assim apenas

ter segurança em repassá-los. Entender os fenômenos

é conseguir, a partir deles, desenvolver a

condição de mobilizar o pensamento e conseguir

assim aproveitá-lo em diferentes situações. (…)

São essas ações que permitem a construção do conhecimento. Da mesma maneira que é necessária essa reflexão de onde queremos chegar com as atividades que preparamos para nossas aulas, também acredito ser importante buscar conhecer, o melhor possível, os conceitos que queremos trabalhar.

Evidentemente, alguém pode argumentar que essa não é uma questão válida, afinal um professor deve ter domínio total sobre todos os conceitos de sua disciplina. Infelizmente, tendo a acreditar que isso não se dá dessa maneira.

O cotidiano escolar pode nos afastar das discussões atuais,ou de quaisquer discussões, sobre nosso campo de conhecimento e podemos facilmente nos conformar em repetir conceituações ou enunciados prontos em livros didáticos e quanto melhor posicionados estivermos dentro da nossa disciplina e do mundo, creio que o trabalho em sala de aula será o mais honesto possível para com estudantes e escola, no sentido de que faço todos e todas saberem como penso e me posiciono. Além do mais, quando temos certeza absoluta de conhecermos algo, aí é que estamos mais perto de não conhecê-lo. Talvez, manter algumas dúvidas, consciente de que meu conhecimento sobre determinada matéria nunca estará pleno, seja uma atitude saudável. Como diz Freire (2002, p.22): “(…) o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento”.

Assim, gostaria de discutir um pouco o conceito geográfico que procurei abordar na proposta de atividade que apresentarei nesse artigo.

ESPAÇO E QUADRINHOS

O conceito de Espaço me parece algo não muito fácil de definir e fazer isso agora não é o objetivo deste texto, mas posso dizer que existe certo consenso de que ele é o objeto da ciência geográfica. Para Haesbaert (2011) o Espaço poderia ser considerado a categoria maior da Geografia, de onde se desprenderia os demais conceitos, território, região, paisagem, lugar, etc. Santos (2006) faz uma definição geral sobre essa categoria maior, para ele o Espaço é formado por um conjunto de sistemas de objetos e sistemas de ações, ou seja, as formas naturais e técnicas sobre a superfície do planeta que compõe uma totalidade em constante transformação.

Sem a intenção de simplificar todo um debate, creio que essas definições são suficientes para trabalhar com turmas de ensino fundamental, considerando que, segundo o PCN de Geografia (1998), essa etapa da educação básica deve estar voltada para a construção das noções de cidadania e pensamento crítico. Além disso, “ajudar a formar conceitos é (…) um papel central do professor” (CAVALCANTI, 2013, p.224), por isso, auxiliar os alunos a construir sua noção de Espaço, aproximando-se o máximo possível de seu conceito é um dos objetivos da proposta de prática aqui apresentada.

O estudo da Geografia através da leitura do Espaço, observando suas características e suas transformações em mapas, fotos, desenhos, etc. pode muito bem guardar relações com a linguagem dos Quadrinhos. McLoud (1995, p.62) coloca que “nossa percepção sobre a ‘realidade’ é um ato de fé baseado em meros fragmentos”.

Nunca estive na Ucrânia, mas através de relatos e imagens de TV e jornal, acredito que ela exista. Tudo que sei sobre o mundo me chegou em pedaços pelos dos meios de comunicação, assim me impressionei com os enfrentamentos entre manifestantes e policiais na Grécia, com as enormes ondas que invadiram as costas tailandesas, com as magníficas cadeias de montanhas do Himalaia, etc. Dessa maneira, juntando partes, vou construindo uma ideia do todo que possa ser o mundo.

Da mesma forma, lemos uma HQ. Cada página nos traz determinada quantidade de quadrinhos e vamos montando eles mentalmente para ter uma noção do todo que é a história que o autor quer nos contar. Cada fragmento possui uma relação um com o outro e através da sequencia com que nos são mostrados, construímos um sentido para eles. A diferença é que no estudo da Geografia, não temos essa facilidade, os fragmentos do mundo não estão dispostos linearmente e para fazermos uma leitura satisfatória temos que usar nossoraciocínio e nossa imaginação.

Para Santos (2006), os objetos materializam o tempo no Espaço, inseridos segundo uma ordem, uma sequencia, eles dão um sentido para aquele meio. A construção do condomínio, no exemplo anterior, pode significar um avanço da ocupação humana naquela porção do espaço, modificando a paisagem e produzindo um sentido para quem a observa.

Moradores antigos do local podem ter uma visão pessimista desse fato, ou seja, maior fluxo de automóveis e gente, barulho, lixo, etc. e empresários do setor imobiliário podem ver a situação de modo inverso, possibilidade de aumento nos negócios, por exemplo. Novamente, a sequencia dos eventos produz um sentido para aquele meio.

Nas HQs, a noção de tempo também tem a ver com a sequencia dos eventos apresentados. Para todos os efeitos, cada quadrinho comprime um instante do tempo e do espaço.

Uma ação divida em muitos quadros, valorizando cada aspecto da mesma, pode dar uma noção de uma passagem de tempo mais lenta. Um corte abrupto de uma cena para outra, traz a ideia de velocidade, rapidez. Em realidade, nas Histórias em Quadrinhos, tempo é espaço (McLOUD, 1995).

Não valeria o mesmo para o Espaço geográfico? Fica aqui essa questão para aprofundamento futuro.

A leitura geográfica, o estudo da Geografia como uma leitura de um texto/mundo ou de um mundo/texto, já foiabordada por REGO (2003). A experiência de sala de aula trazida aqui, e realizada em meu local de trabalho, pode ser uma proposta para trazer essa ideia para a prática.

QUADRINHOS E LEITURA

GEOGRÁFICA NA SALA DE AULA

A utilização de HQs em sala de  aula tem sido cada vez mais comum. O potencial pedagógico dessa linguagem já foi explorado em dezenas de práticas e trabalhos escolares.

Para a experiência que apresentarei aqui, usei a HQ intitulada Uma Breve História da América, como mostra a Figura 1, de

Figura 1 – Uma Breve História da América. Fonte – CRUMB, Robert. América. São Paulo: Conrad, 2010.

autoria do quadrinista estadunidense Robert Crumb. É possível observar que o autor buscou apresentar um exemplo do processo de urbanização pelo qual passou uma imaginária paisagem americana. Na ordem escolhida pelo autor, vemos os objetos naturais serem gradativamente substituídos pelas formas construídas pelo homem, até que não reste mais nada das características iniciais. Um processo comum em diversas partes do mundo.

A atividade consistiu em recortar os quadrinhos dessa HQ e entregá-los aos alunos, fora da ordem original, pedindo-lhes que imaginem uma sequencia para os acontecimentos apresentados nos quadrinhos e os organizem como tal.

O autor não nos apresenta as casas sendo construídas por operários, nem a rua ser asfaltada, mas imaginamos que foi isso que aconteceu. Poderia ser diferente? Não sabemos, por isso, ao pedir aos alunos que construíssem sua ordem, não estabeleci a existência de uma sequencia “certa” para os quadrinhos, os deixei livres para que escolhessem as suas.

Existe outra possibilidade de sequencia para a HQ de Crumb? Quem sabe a história poderia começar pelo último quadrinho? Isso implicaria considerar que um processo de urbanização pode ser revertido. De fato, algo semelhante a isso pode acontecer. É possível encontrar no mundo exemplos de cidades esvaziadas, seja por uma guerra civil, por um desastre climático, por uma epidemia, por um acidente nuclear, etc. Por isso, qualquer ordem vinda dos alunos era válida, cabendo a mim o papel de problematizar as escolhas feitas por eles. Por que escolheram determinada sequencia? O que seria preciso acontecer para se justificar a ordem escolhida?Enfim, aqui é requerida certa dose de criatividade por partedo professor.

Um aluno explica a sequencia escolhida por ele da seguinte forma:“(…) Com o tempo o lugar foi evoluindo mais e mais (…)”. Nesse exemplo, outra discussão é possível ser feita: Todo processo de urbanização, ou seja, a substituição total das formas naturais por outras construídas pelo homem vai representar,necessariamente, uma “evolução”? Que significados normalmente são atribuídos a essa expressão? Podemos dizer que, no caso aqui, “evoluir” significa alcançar uma melhor condição de existência? Temos que estar atentos para o que os alunos têm para nos apresentar.

Outra atividade ligada a essa história é pedir aos alunos que construam um último quadrinho para a sua sequencia. Como ela poderia terminar? Que fim pode ter esse processo de urbanização? Ou de “desurbanização”, se for o caso. Na história original, o autor apresenta um epílogo com três finais distintos para a sua história, podemos vê-los na Figura 2.

Figura 2 - Epílogo. Fonte - CRUMB, Robert. América, São Paulo: Conrad, 2010.

Figura 2 – Epílogo. Fonte – CRUMB, Robert. América, São Paulo: Conrad, 2010.

A primeira alternativa coloca um desastre ecológico de algum tipo, esvaziando a cidade e deixando apenas ruínas. No segundo quadrinho vemos veículos voadores, jardins formatados homogeneamente e casas de arquitetura mais compacta e simples, podendo lembrar certa racionalidade. Por fim, temos uma espécie de eco-vila, sem automóveis, prédios ou asfalto, onde as árvores predominam e transmitem um tipo de sensação de tranqüilidade.

Sem apresentar essas alternativas aos alunos, lhes pedi que criassem o seu último quadrinho, deixando-os livres para criarem, pois as possibilidades são infinitas, tanto para a imaginação deles, quanto para as transformações espaciais.

Basta lembrar que na história do planeta, florestas cobriram desertos e montanhas isolaram mares.

Trago um dos trabalhos dos alunos na Figura 3.

Figura 3 - O Tempo. Fonte - Trabalho de aluno.

Figura 3 – O Tempo.  Fonte – Trabalho de aluno.

Nele, procurou-se representar a cidade logo depois daquele intenso processo de urbanização. No desenho, vemos que a quantidade de construções diminui um pouco e as árvores voltam a ganhar sensivelmente mais visibilidade.

Explicando o seu desenho, o aluno escreve: “Em lugar de casas a um morro (…) as casas foram saindo e criou um morro (…). Criou também um hospital para as pessoas com ambulância e tudo (…)”

Nesse exemplo, a primeira discussão que podemos fazer é: como pode se “criar” um morro ou um hospital? Quais são os processos responsáveis por modelar o relevo? Qual é a necessidade de se construir um hospital? Quem tem o papel de construir hospitais? Essas são algumas problematizações possíveis. Também podemos discutir sobre essa noção de “criar”. Não estaria aí uma ideia de que as transformações espaciais acontecem de maneira “natural”? Ou seja, de que não há influência da vontade humana nas coisas ao nosso redor.

Assim, podemos “naturalizar” a derrubada de uma floresta, a remoção de uma favela, um congestionamento de trânsito, etc. Como se tudo que acontecesse no mundo não nos dissesse respeito e tão pouco pudéssemos fazer qualquer coisa para interferir, como se todas as transformações espaciais fossem tão inevitáveis quanto a queda de um relâmpago, um terremoto, uma erupção vulcânica ou um furacão.

Enfim, são muitas as possibilidades que essa atividade traz para as discussões em sala de aula, tirando o aluno da posição de receptor de informações, e fazendo do professor um auxiliar na busca pela construção do seu conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os assuntos relacionados ao ensino de Geografia e às Histórias em Quadrinhos não podem se esgotar em um único trabalho. Assim, fica aberto mais um caminho, entre vários, para que essa viagem tenha prosseguimento.

Cabendo ao professor escolher o seu O importante, na atividade proposta aqui, é sempre manter-se aberto para o que os alunos podem trazer e procurar não apresentar o caminho “certo”, deixar que façam suas escolhas, pois tudo que trazem, pode ser aproveitado em sala de aula, basta estar com seu ouvido atento. Um aluno, em seu trabalho, concluiu sua história com um “apocalipse zumbi”. Mesmo essa ideia, pode ser relacionada com o conteúdo das transformações espaciais, se a considerarmos tal como uma epidemia de uma doença qualquer que ataca uma determinada população.

Embora possamos, eventualmente, nos preocupar com o fato dos alunos não terem compreendido determinado conceito, é preciso considerar que o conhecimento não se constrói apenas naquele momento em sala de aula. Aí pode acontecer um primeiro impulso, mas serão necessárias mais experiências de vida, mais leituras, sempre em busca de preencher uma eterna incompletude, um eterno inacabamento.

Tal como o Espaço geográfico, sempre mutável. Nunca acabado. Acredito que nosso papel está próximo de ser cumprido se podemos auxiliar os alunos para que construam sua leitura, seu entendimento sobre o mundo, e então possam fazer suas escolhas, quer seja a de se tornarem meros expectadores ou de intervirem para a sua modificação. É bom lembrar que nenhuma dessas escolhas implica passividade, pois ambas possuem suas consequencias.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares

nacionais: geografia/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília:

MEC/SEF, 1998.

CAVALCANTI, Lana. Apre(e)nder a paisagem geográfica: a experiência

espacial e a formação do conceito no desenvolvimento das pessoas.

In: PEREIRA, Marcelo G. (Organizador). La opacidad del paisaje: formas,

imágenes y tiempos educativos. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2013.

COSTELLA, Roselane Z. Movimentos para (não) dar aula de geografia e

sim capacitar os alunos para diferentes leituras. In:CASTROGIOVANNI,

Antonio C.;TONINI, Ivaine M.; KAERCHER, Nestor A (Organizadores). Movimentos

no ensinar Geografia. Porto Alegre: Imprensa Livre: Compasso

Lugar-Cultura, 2013.

FREIRE, Paulo. A Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática

educativa. 25 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

HAESBAERT, Rogério. Espaço como categoria e sua constelação de conceitos:

uma abordagem didática. In: TONINI, Ivaine M. et al (Organizadores).

Porto Alegre: Ufrgs, 2011.

McLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. 3 ed. São Paulo: Makron

Books, 1995.

REGO, Nelson. O ensino de Geografia como uma hermêutica instauradora.

In: REGO, Nelson et al (Organizadores). Um pouco do mundo cabe nas

mãos. Porto Alegre: Ufrgs, 2003.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção.

4 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

As Sarjetas do Espaço

O artigo que publico hoje foi apresentado nas II Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, ocorrida em São Paulo, no ano de 2013, nas dependências da ECA-USP.

AS SARJETAS DO ESPAÇO

A SARJETA

Ao ler uma HQ, nos deparamos com uma história ou um acontecimento apresentado de maneira fragmentada. Conectando mentalmente os diferentes pedaços ou momentos dentro de cada quadrinho, em uma sequencia, vamos compreendendo a totalidade daquilo que quer ser mostrado. O que vemos são os fragmentos escolhidos pelo autor para melhor contar aquela história, nos deixando livres para escolhermos como fazer a ligação de todas essas partes. Porém, parece óbvio, ele espera que o façamos de determinada maneira, ainda que não tenha controle algum sobre isso.
Em seu livro Desvendando os Quadrinhos, McLoud (1995) chama de conclusão a noção que permite às pessoas, com base na experiência vivida ou transmitida, compreender o todo de uma situação através de suas partes. Segundo esse autor praticamos a conclusão com mais freqüência do que imaginamos. Observe a Figura 1, extraída da obra citada:

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Figura 1– O espaço em branco entre os quadrinhos é chamado de sarjeta. Fonte: McLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995.

Embora não tenhamos visto o machado atingir a vítima, parece evidente o que aconteceu nessa sequencia de quadrinhos. Nela, o leitor apenas imagina os acontecimentos entre a primeira cena e a segunda. Esse esforço imaginativo é exigido permanentemente para quem inicia a leitura de uma HQ. Eisner coloca que o autor é, muitas vezes, obrigado a escolher apenas alguns momentos, supostamente os mais significativos, para apresentar uma ação e, a fim de ter sua mensagem entendida, espera que, com sua experiência, o leitor faça as conexões mentais mais apropriadas para os fragmentos apresentados.
O intervalo em branco entre cada quadrinho de uma sequencia é preenchido pela imaginação do leitor, é ali que um acontecimento, apresentado visualmente em pedaços, ganha sentido. McLoud chama esse espaço, entre cada cena, de sarjeta. Ali, usamos as cores que desejarmos, passamos o tempo que quisermos, e vemos pelo ângulo que preferirmos, dando, assim, uma unidade a algo que, num primeiro momento parecia estar fragmentado
Desse modo, é possível dizer que o leitor de uma HQ não é um expectador passivo, sua participação é exigida a todo tempo. As lembranças de suas experiências, sua imaginação, seus sentimentos, tudo isso será usado para ligar os diversos pedaços de acontecimento desenhados em cada quadrinho. O que McLoud (1995) chamaria de um “ato de fé”, poderia ser explicado como uma capacidade humana de aceitar a existência de outras “realidades” ainda que não se esteja imerso nelas. É possível que essa seja a característica diferencial da linguagem dos Quadrinhos.
A linguagem cinematográfica utilizará também o recurso da conclusão, porém para causar algum efeito específico ou fazer algum suspense. Assim, alguma sombra projetada em uma parede, alguma cena omitida, podem acontecer, mas, na maioria das vezes, em um filme, os acontecimentos vão se desenrolando em uma tela defronte nossos olhos, e só temos o trabalho de deixar que as imagens invadam nossas retinas para compreender o que se passa. O autor de Quadrinhos não conta com essa possibilidade, ele precisa escolher os momentos mais importantes de uma ação para serem congelados e “enquadrados”. Esperando, assim, que o leitor faça o trabalho de dar sentido às imagens que ele escolheu. Quanto mais essas imagens tratarem de situações reconhecíveis para a experiência do leitor, mais provável será que o autor atinja seu objetivo.
Assim, por que não dizer que a leitura dos Quadrinhos também exige alguma leitura de mundo? Talvez isso seja possível, se considerarmos que é através das experiências vividas, do que aprendemos das nossas relações sociais ou do que conhecemos nos meios de comunicação que damos sentido, ou vida, às várias imagens que nos aparecem nas páginas de uma História em Quadrinhos. Em um primeiro momento, essas imagens não são mais que fragmentos, mas, depois de se conectar mentalmente cada cena, o que temos é uma história, ou, ao menos, a nossa história.
Não seria dessa maneira, igualmente, que se dá a nossa leitura de mundo? Quando assistimos TV, quando lemos um jornal ou revista, quando navegamos na internet, quando estamos olhando pela janela de um ônibus, etc., não estamos, também, procurando dar sentido a essa enxurrada de imagens que vemos? Não temos que pensar no que pode ter acontecido antes, ou no que poderá acontecer depois, de determinada cena com que nos deparamos? Nossas concepções de mundo e experiências vividas não são sempre chamadas a nos ajudar a entender o que se passa ao nosso redor? Pois bem, gostaria de me deter um pouco mais nesse questionamento.

O MUNDO EM FRAGMENTOS (OU QUADRINHOS)

Conhecemos o mundo, aquele mundo além do alcance dos nossos olhos, por partes, por fragmentos. À medida que vamos realizando nossas experiências ou vivências, conhecemos partes desse mundo. De outras partes dele, tomamos conhecimento através dos relatos que recebemos, seja pelos meios de comunicação, seja em conversas, etc. Apenas nos restando, portanto, acreditar, ou “ter fé”, que exista algo mais do que está diante de nós.
Rego faz uma interessante metáfora do mundo, ou da vida, como um texto escrito. Porém, imaginando-o, não composto por palavras, mas, sim, por fatos e condições. Sendo assim, é possível pensar uma leitura de mundo como um processo de entendimento e compreensão de seus fatos, do mesmo modo que vamos dando sentido a cada palavra numa frase e buscando as relações existentes entre elas para entendermos o significado geral do todo que se quer comunicar, ou ainda, darmos o nosso próprio significado para ele. De acordo com a maneira como fazemos a conexão entre os fatos da vida, e da concepção que temos sobre eles, as coisas que nos cercam ganham sentido e, quem sabe, nós mesmos o ganhemos também, à medida que significamos e ressignificamos os lugares. Então, como nos chegam esses fatos do mundo? Ou, para manter uma conexão com o assunto desse trabalho, como nos chegam os “quadrinhos” do mundo?
Uma coisa parece certa, isso não acontece como nas páginas das HQs. Na vida não temos uma sequencia linear das coisas diante de nós e, dessa forma, precisamos fazer as conexões entre fatos distanciados espacialmente e temporalmente um do outro, ou ainda, temos que buscar diferentes olhares sobre esses mesmos fatos para realizarmos nossas leituras de mundo.
Oliveira Jr e Mansur (2012) fazem uma discussão a respeito das imagens relacionadas com determinadas paisagens que acabam por ganhar o status de representantes fiéis dessas. Os cartões postais, por exemplo, disponíveis em bancas de revistas ou pontos turísticos, carregam, neles, a imagem de um lugar que, para muitos – os turistas, os governos e as agências de turismo, entre outros – é a verdade sobre esse lugar.
Os autores trazem para a discussão o exemplo de um cartão postal do Rio de Janeiro. Nele, é possível ver a conhecida foto aérea da estátua do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Ao longe, se vê a cidade, com seus prédios multiplicando-se sobre os morros. Trata-se da imagem mais difundida pelos meios de comunicação, nas novelas, no cinema, nas revistas de turismo, etc., para muitos: o próprio “Rio de Janeiro”.
Possivelmente, para se constituir outras narrativas diferentes a cerca do mesmo tema, seria necessário buscar outras fontes, outras imagens, outros meios, encontrar outros sujeitos que tenham, então, outras visões. No caso do Rio de Janeiro, talvez fosse preciso conhecer seus moradores, visitar locais omitidos nos cartões postais, assistir filmes ou ler livros que enfoquem o mesmo lugar, sob um ponto de vista distinto. Enfim, conectando os “Quadrinhos”, se tentaria, então, realizar uma nova leitura desse espaço.
Como fazer esse exercício na aula de Geografia? Sem a pretensão de responder essa pergunta, trarei exemplos de uma proposta de prática realizada por mim, em algumas turmas com as quais trabalhei durante o ano de 2012, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Cincinato Jardim do Vale, no município de Gravataí, Região Metropolitana de Porto Alegre. Nela, tento, junto aos alunos, articular uma leitura espacial através da linguagem dos quadrinhos, chamando-os a refletir sobre as informações, imaginações e ideias que possam ter a respeito de lugares e, também, dos conteúdos geográficos.

CONECTANDO OS FRAGMENTOS (OU QUADRINHOS)

Tentando, então, pensar uma atividade que permita praticar uma leitura dessas imagens que nos chegam sobre o mundo, pelos mais diversos meios, cheguei a uma proposta que tem a linguagem dos quadrinhos na sua base. Mais precisamente, deslocando a ideia de conclusão para uma possível leitura geográfica
A proposta foi realizada em minhas aulas, com duas turmas do 6° ano, na escola onde trabalho atualmente e consistia, primeiramente, em distribuir tiras de quadrinhos entre os alunos e alunas. Essas tiras, montadas por mim, possuíam três quadrinhos, sendo primeiro e o terceiro, vazios, e, no do meio, se podia ver uma fotografia em preto e branco de um morro parcialmente ocupado por uma provável favela. Como se vê na Figura 2.

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Figura 2 – Quadrinhos em branco. Fonte: Montado pelo autor.

Após a distribuição das tiras, pedi aos alunos que, em duplas, pensassem em desenhos para preencher os quadrinhos em branco. Estavam livres para fazer como quisessem. Não importando o grau de habilidade para o desenho que pudessem possuir. A intenção era a mobilização de seus pensamentos e imaginação. Como poderia ser aquele morro antes que as casas fossem construídas? O que acontecia por lá? E como ficará aquele lugar depois? Quem são as pessoas que vivem lá? Por que foram para lá? Essas, entre outras, eram algumas questões propostas para ajudá-los na tarefa.
Favelas e morros estão sempre presentes no imaginário a respeito do Rio do Janeiro e, ainda que meus alunos, em alguma medida, habitem lugares semelhantes, esses elementos não pareceram mobilizar suas imaginações a respeito de seu próprio lugar. Falando de outro modo, ao se depararem com uma imagem de um morro ocupado por casas humildes, a maioria deles a relacionou com o Rio de Janeiro e não com suas vizinhanças em Gravataí.
Sabemos que morros e/ou favelas não existem apenas na cidade do Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, esses elementos estão igualmente presentes1 e em muitas outras cidades e países encontraremos coisas semelhantes. Será, então, possível que as imagens dos meios de comunicação sejam tão mais fortes que nossas vivências, a ponto de determinar nossa relação imagem-lugar?
E sobre os morros cariocas? Que imaginações existem a respeito desses lugares? Que significados são produzidos sobre eles? Como os alunos imaginam as transformações que ocorrem no espaço e se as imaginam? Procuraremos discutir um pouco disso através dos quatro trabalhos a seguir, escolhidos dentro de um universo de cerca de vinte outros, por trazerem aspectos interessantes a respeito das imaginações e transformações espaciais.

O primeiro deles, na Figura 3, nos traz uma visão sobre o chamado “morro”, que foge de alguns prováveis estereótipos mais comuns ligados a esse lugar. Na história intitulada “A Visita ao Morro”, vemos duas personagens que seriam duas meninas, amigas ou colegas, conversando.

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Figura 3 – A visita ao morro. Fonte: Trabalho de alunos.

Abaixo, em itálico, reproduzo o texto, para facilitar a leitura, lembrando que seus possíveis erros de ortografia foram mantidos como no original:

Scheron e Taisia estavam conversando.
– Amiga fiquei sabendo que tem um morro muito legal pra conhecer.
– Que legal, vamos conhecer.
Logo depois que elas conheceram.
– Amiga adorei conhecer.
– Eu também poderíamos ir lá mais vezes.
Neste exemplo, as alunas, de alguma maneira, realizam uma versão diferente daquela que permeia o imaginário a respeito desse lugar. Aqui, o “morro” não é dominado por traficantes ou bandidos, como normalmente é representado nos noticiários, onde a qualquer momento uma bala perdida pode atingir qualquer um, onde os confrontos entre facções “aterrorizam” a população e onde a Polícia Militar trava sua “guerra” contra o crime, protegendo as “pessoas de bem” que vivem fora dali.
As autoras da tira de quadrinho escolheram dar outro significado a esse lugar. Lá, como em um bairro de gente abastada, é possível conhecer pessoas, fazer amigos e passar horas agradáveis. Inclusive, é possível que se queira voltar para lá, segundo a história. Como essa visão pode ser apresentada nessa HQ? Quem sabe, as alunas vivam em lugares parecidos com esses ou conheçam quem viva. O importante é que, desse modo, podemos discutir com a classe, como um todo, quais são as imagens normalmente difundidas sobre o “morro”, quem as difunde e o porquê e se existe outro modo de concebê-lo. Essa parece ser uma questão pertinente para a aula de Geografia, se considerarmos que as concepções a respeito dos lugares, assim como seus aspectos visíveis e materiais, são constituintes dos próprios lugares.
Uma visão bem diferente pode-se perceber na próxima HQ, a da Figura 4, mais próxima da ideia comum, veiculada, de alguma maneira, nos meios de comunicação.

 

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Figura 4 – A bomba na favela. Fonte: Trabalho de alunos.

Mais uma vez, reproduzo o texto da história:
O Rio de Janeiro botou uma bomba na favela para acabar com a bandidajem!!
– O que é isso aí?
00:00. Bomba nuclear.
– AHAHA!
No primeiro quadrinho, temos a imagem em close do que seria uma bomba-relógio, com um pequeno personagem, no canto direito, que a encontra. O terceiro quadrinho mostra uma explosão, em meio ao que parecem ser gritos. E, de acordo com o texto, foi o “Rio de Janeiro” quem instalou o artefato na favela. É curioso pensar em quem estaria sendo representado na expressão “Rio de Janeiro”. O governo do estado? A sociedade carioca? Quem saberia… De fato, às vezes é possível, em alguma conversa do dia-dia, escutar alguém verbalizar soluções para os problemas das favelas, como por exemplo: “Tinha que colocar uma bomba lá” ou “tinha que matar tudo”. Essa ideia, muito comum, parece ser a que baseou a HQ dos alunos.
Como os autores da tira de quadrinhos puderam demonstrar uma imaginação como essa a respeito desse lugar? As constantes imagens de militares armados para a guerra, invadindo morros, veiculadas nos meios de comunicação, não contribuiriam com a produção e reprodução desse tipo de visão? No final de 2010, teve ampla cobertura em TV e em jornais, a operação levada a cabo pelas polícias do Rio de Janeiro, polícia federal e forças armadas no conjunto de comunidades conhecido como “Complexo do Alemão”. A partir das falas de apresentadores de telejornais e comentaristas de questões de segurança, podia-se pensar que essa era uma solução há muito esperada e, talvez, a única possível: a “solução final”, a modo de Adolf Hitler, o extermínio total. Para quem simpatizou com as imagens de tanques adentrando uma favela, seria difícil aceitar que lá se detonasse uma bomba nuclear? Fica a questão.
A solução militar para as questões sociais, a violência urbana ou a pobreza, é a única possível? Quais as principais diferenças entre a primeira HQ e esta? Que visões elas apresentam sobre esse lugar? Onde é mais comum observar cada uma das duas visões? Quem são as pessoas que divulgam e concordam com uma ou outra? Qual é a mais divulgada na TV? Qual delas corresponde à verdade? Existiria uma verdade a respeito desse assunto? A discussão é ampla e outras perguntas podem ser pensadas.
A terceira tira de quadrinhos fará alusão a assuntos relacionados mais com as prováveis modificações processadas na superfície física terrestre do que a visões de mundo a respeito de algum lugar. Ainda que esta possibilidade não possa, de modo algum, ser descartada neste exemplo da Figura 5.

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Figura 5 – O deslizamento. Fonte: Trabalho de alunos.

No primeiro quadrinho, se vê o que parece ser o início de um processo de ocupação: uma só construção, similar a uma igreja, mas com uma chaminé, ao lado da qual há um personagem que diz: “Ta tarde, minha gente”! Ele parece segurar uma ferramenta e, acima dele, e à direita, três linhas horizontais que lembram uma plantação, pelas formas pontiagudas ou em formato de folha que se elevam dessas linhas. À direita da provável plantação, temos o que seria um caminhão, cujo motorista estaria dizendo, através do balão: “Vamos morar aqui”. Abaixo da plantação outra construção parecida com um galinheiro e, ao redor do quadrinho, desenhos de árvores, sendo estas o elemento preponderante. Esse desenho poderia ser a imaginação de uma provável paisagem anterior à mostrada no segundo quadrinho. No qual as construções humanas são um pouco mais visivelmente numerosas.
Aqui, talvez mais do que nas duas primeiras tiras de quadrinhos, é forte o trabalho de conclusão dos alunos, imaginando um espaço em transformação: o morro que, hoje, se encontra ocupado por uma favela, provavelmente, estava vazio dela, ontem. Que forças atuam nesse processo de ocupação? Por que pessoas procuram esses locais para fazerem suas moradias? Quais as consequencias desse fato?
Uma resposta a última pergunta é construída pelos alunos no terceiro e último quadrinho da tira, onde se lê logo abaixo: “Aconteceu um deslizamento”. Não seria essa uma das consequencias do processo desordenado de ocupação de encostas? A retirada de árvores não acarreta uma maior erosão? Nesta tira, os alunos podem ter realizado um raciocínio espacial tendo, também, recorrido a sua experiência, provavelmente vivida em outra aula ou assistindo ao noticiário de TV, para elaborar a presente conclusão.
Neste último quadrinho também se vê o que parece ser um desenho do Cristo Redentor sobre o morro. Como que para nos lembrar de onde a história se passa, e, quem sabe, querendo dizer que se tratando de uma favela em um morro, não poderia se passar em outro lugar.
De qualquer modo, não seria essa uma base para um exercício de pensamento espacial mais próximo de um ensino de Geografia preocupado com a questão da espacialização dos fenômenos e não tão preocupado com a memorização de dados? Uma proposta que chame os estudantes a produzir conexões entre fatos e informações, relacionando-os da maneira mais adequada com o que imaginam ou acreditam, não seria de grande interesse para professores e professoras que querem dos seus alunos e alunas mais do que respostas prontas para perguntas prontas? A discussão segue em aberto.

REFERÊNCIAS

McLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995. p. 24-93.
OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Fotografias Dizem do (nosso) Mundo: educação visual
no encarte Megacidades, do jornal O Estado de São Paulo. In: TONINI, Ivaine Maria et al
(Orgs.) O Ensino de Geografia e suas Composições Curriculares. Porto Alegre: UFRGS,
2011. p. 245-257.
OLIVEIRA JR, Wenceslao M de; MANSUR, Mônica. Fotografias, Geografias e Escolas.
Disponível em http://alb.com.br/arquivomorto/
edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE_1364.pdf. Acesso em 26 out.
2012.

O Espaço em Quadrinhos

Quadrinhos na internet

Como primeiro post desse blog, escolhi o artigo que enviei para o II Congreso Internacional Viñetas Serias, que teve lugar na cidade de Buenos Aires, no ano de 2012. Nele discuto um pouco a ligação entre o uso das imagens e o conhecimento geográfico, também trago um relato de prática de aula com a linhagem dos quadrinhos.

O Espaço em Quadrinhos

Este artigo se baseia em meu trabalho de mestrado, realizado no Programa de Pós- Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De maneira mais compacta, apresentarei as principais discussões levantadas em minha pesquisa e as experiências, nas quais me envolvi, com o uso das Histórias em Quadrinhos (HQs) na prática de ensino de Geografia.
Compreendendo que o conhecimento geográfico pode ser estudado em mais de uma linguagem, portanto, indo além do texto escrito, dos gráficos e, principalmente, dos mapas (Oliveira Jr, 2010), proponho, certo de que não sou o único a fazer isso, a utilização de um veículo cada vez mais presente no universo acadêmico e escolar: as HQs (Vergueiro; Ramos, 2009).
As imagens fazem parte da construção do discurso geográfico desde há muito tempo (Cosgrove, 2008), com o uso de desenhos, croquis, fotos, com a observação da paisagem, etc. O pictórico está presente de muitas maneiras no estudo da geografia, assim, educar os olhos se torna uma questão importante no ensino dessa disciplina, não apenas no sentido de adquirir uma capacidade de captar visualmente os detalhes do espaço geográfico, suas cores e formas, mas também no de trabalhar uma compreensão do que significa o ato de ver (Oliveira Jr, 2009), de como construímos conhecimento através dele e de como o que vemos ao nosso redor se enche um pouco de nós mesmos, de nossas concepções, de nossas imaginações. Dessa forma, ao se constituir de uma leitura de imagens, as HQs têm muito para contribuir.

Começando a História

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. Jorge Germano Sperb, na cidade de São Leopoldo, foi o local escolhido para o desenvolvimento de minhas propostas de atividades em aula. Neste texto apresentarei uma delas, que se deu da seguinte maneira: cada dupla de alunos procurariam imagens digitando palavras-chave ligadas ao conteúdo estudado em aula, como «capitalismo», «socialismo», «desenvolvimento»,
«subdesenvolvimento», «desigualdade», «livre-mercado», «pobreza», «riqueza» e

«consumismo». Com as imagens escolhidas, a elaboração de HQs, usando um programa de edição digital de imagens, seria o passo a seguir. A montagens teriam de uma ou até duas páginas. Estou ciente de que esse condicionamento para a busca no site teria implicação nos trabalhos, quiçá limitando sua criatividade, mas entendi ser necessário, para que os mesmos se focassem na tarefa. Sabemos como a disponibilidade de internet pode levar alguém à dispersão fácil e entendo que aí estava meu papel como professor, ou seja, tornar possível aos alunos o alcance de suas potencialidades de criação e aprendizagem.
A escolha das imagens era livre, dentro das sentenças propostas e de acordo com a história pensada por eles. Feito isso, cada dupla partiu para o uso do OpenOffice-Draw. Um programa onde é possível trabalhar com diferentes imagens, ordená-las, diminuí- las, aumentá-las, sobrepô-las, acrescentar textos em caixas ou em balões, etc. Trata-se de uma versão equivalente ao Publisher, o editor de imagens do Windows. O uso dos computadores não representou uma dificuldade para esses jovens: como era de se imaginar, todos já estavam habituados a comunicar-se pelas redes sociais da internet e a realizar seus trabalhos escolares através dessa ferramenta.
Nesta parte da atividade é que as imagens aleatórias do Google ganhariam um ordenamento ou uma imaginação, não sei se distinta do comum ou não. Para Goettert (2010: 96), «Imaginar o Mundo Moderno é imaginar um mundo feito margens, pedaços recortados de um espaço desigual, mas combinado». Assim, esse mundo recortado que o Google Imagens nos apresenta receberia uma combinação, através da capacidade que a linguagem dos quadrinhos possui de, por meio da imaginação do leitor ou do autor, dar sentido àquilo que, de maneira objetiva, se encontra fragmentado. E, de certa maneira, não apenas pela Internet vemos um mundo em partes. Segundo McLoud (1995: 62): «Nossos sentidos podem revelar um mundo fragmentado e incompleto. Mesmo uma pessoa muito viajada só pode ver partes do mundo durante uma existência. Nossa percepção da “realidade” é um ato de fé baseado em meros fragmentos». Ou seja, nossa capacidade de imaginar o que não está dado para os olhos pode ser trabalhada através da leitura das HQs, aproximando-a com a leitura geográfica.
Em todos os Quadrinhos analisados, aspectos diferentes do imaginário ligado ao capitalismo são observados. A ideia de ascensão social, de que somente com um elevado patamar de consumo se pode atingir a chamada felicidade, a noção de desenvolvimento e o conflito entre ricos e pobres e suas implicâncias espaciais são trabalhados pelos alunos, trazendo possibilidades para a análise geográfica. Assim, parte das construções que sustentam o discurso capitalista se faz presente nas atividades realizadas e podem, assim, ser interpeladas pelo professor. Trago dois desses trabalhos feitos pelos alunos, com suas ortografias originais.
Observando a primeira montagem, a da Figura 1, intitulada Crianças Com Fome!, vemos, no quadrinho inicial se vê a imagem de uma criança raquítica, disponibilizada pelo Google Imagens ao se digitar as palavras «pobreza» ou «subdesenvolvimento».
Parece difícil imaginar outra fala para aquela personagem além da lida no balão:

«Que vida ruim, não tenho os pais, moro na rua e tenho muita fome». A história continua no próximo quadrinho, com outra personagem (ou será a mesma?), referindo- se ao seu local de moradia, semelhante a um campo de refugiados, da seguinte maneira:
«Moro aqui neste lixo». No final ela manifesta um desejo, o seu balão de fala projeta-se para a parte inferior da folha, ao lado direito do último quadrinho e nele se pode ler:
«Queria viver assim»! Ao lado esquerdo desse balão se vê um quadrinho com a imagem de pessoas em um momento de lazer e relaxamento. Este se divide em dois, de um lado um casal imerso da cintura para baixo em um lago de águas cristalinas se alimenta de frutas tropicais e no horizonte se vê o que parece ser uma montanha coberta de vegetação, o que dá um aspecto paradisíaco à cena. Na outra metade do quadrinho, parecemos ver vizinhos realizando uma confraternização, com garrafas de cerveja sobre uma «mesa-boia», bem como um botijão de gás, que parece servir para cozinhar ou assar algo.
No último quadrinho, uma situação de desigualdade está retratada: enquanto os ricos viajam para um paraíso terrestre, os pobres aproveitam uma enchente para fazer uma festa na «piscina». A situação dos moradores do bairro na foto, ainda que de precariedade, parece ser melhor que a do menino pobre do quadrinho anterior, justificando a sua fala.
Na transição do segundo para o terceiro quadrinho há um grande salto espacial, um salto duplo, se considerarmos os dois espaços mostrados no mesmo quadrinho: a ilha paradisíaca e o subúrbio de uma grande cidade. Ambos representando uma vontade do menino de mudar de vida, de alcançar uma existência menos precária. O caminho a percorrer para chegar àquela mesa farta no lago parece ser longo e, para a história única mundial, não há outro, apenas o do sucesso financeiro, com viagens turísticas ao redor
do mundo. Fora desse caminho, só existe a miséria, a barbárie e a não-civilização. Assim, fecham-se as probabilidades e as proliferações de pensamentos, de concepção de outras formas de convívio entre as pessoas e dessas com o espaço geográfico (Oliveira Jr, 2010).

figura1

 O próximo trabalho, nas Figuras 2 e 3, também abordará a questão da desigualdade social, porém trará outra dimensão dela, a do conflito social. Em Um
Mundo Diferente temos, no primeiro quadrinho, a imagem de um homem rico, com um charuto entre os dedos e rodeado por notas de dinheiro e outros símbolos de riqueza, que, em sua «fala», se gaba de sua situação: «Como é bom ser rico sem nenhum pobre para atrapalhar». No segundo quadrinho temos uma concentração de pessoas com bandeiras, sendo que as vermelhas estão em destaque, sugerindo uma manifestação de protesto. Lendo o quadro ao lado esquerdo, descobrimos quem é esse homem: «Então armaram uma greve para invadir a casa do enpresaria Carllos para acabar com a suas riqueza». Seguindo a leitura, temos uma transição que nos leva à cena de uma provável loja de televisores, repleta desses aparelhos, onde um dos personagens «fala», através de um balão: «Terremos que falar com nosso inpresario Carlos que não esta dando serto as vendas de TVs».
O resultado se vê no último quadrinho, com pessoas em uma espécie de «lixão», onde, de um balão partindo de uma delas, se pode ler: «Que merda esse inpresario tirou nossas casa e nos jogou no meio do lixo».
Do mesmo modo que em todas HQs de alunos apresentadas nesse trabalho, esta trará uma transição quadro a quadro conhecida, segundo McLoud (1995:71), como
«transição cena – a – cena», na qual somos levados, através de grandes cortes espaciais e temporais, de uma parte a outra da narrativa, cobrindo consideráveis distâncias. Assim, conhecemos a história de um empresário que, talvez pela greve de seus empregados, vê as vendas de suas lojas de televisão baixarem e com isso resolve investir no ramo imobiliário, comprando terras, nas quais pessoas pobres moravam, para a construção de casas de alto padrão.
 Figura 2

Figura 3

De que «mundo diferente» esta história nos fala? Sou assaltado pelo mesmo sentimento de Foucault ao contemplar “Isto não é um cachimbo”, de Magritte (Foucault,
2004). Mais uma vez, os olhos voltam-se para a HQ, a fim de procurar o que há de diferente nesse mundo. Vemos o conflito comumente estabelecido entre os possuidores de riquezas e os carentes materiais, cuja situação de pobreza sempre o coloca em desvantagem social, pois além de viverem em moradias precárias, não têm nem a certeza da sua permanência nas mesmas. O vai e vem dos mercados influenciando as ações humanas, como a compra de um terreno e o seu uso para construção de um bairro privado, ou a expulsão de famílias de alguma área e a sua consequente conversão em sem-tetos a inchar a população de rua e a pobreza nas cidades, ou, então, a diminuição do poder de compra dos salários dos trabalhadores, levando-os a decretar uma greve contra essa situação de concentração de riqueza. Até aí não parece haver diferenças significativas com o que se conhece sobre o mundo, normalmente.
O próximo quadrinho mostra o que parece ser uma favela vista de longe e o quadro ao lado esquerdo segue a narrativa textual: «Carlos quer conprar esta vila para construir casas chiques para sua revenda», dando a entender que o empresário Carlos decidiu mudar de ramo de negócios, do comércio de aparelhos eletrônicos para a especulação imobiliária.
Cada imagem usada na HQ, se tomada isolada das demais, possivelmente produzirá um sentido diferente do produzido quando em junção com as outras. A imagem de pessoas em um chamado lixão, grosso modo, não é mais do que isso. Porém, a maneira como ela foi introduzida na narrativa é que nos faz pensar em como essas pessoas foram levadas para lá e quão injusta é essa situação. Certamente, não seria necessário que uma imagem como esta fizesse parte de uma sequência de outras, ou viesse acompanhada de um balão de fala, para que o leitor a considerasse como a representação de uma injustiça social. Isso porque este já teria, provavelmente, sua carga de experiência sobre o mundo, sentidos já produzidos, visões já formadas,
fazendo-o chegar a essa conclusão, assim como outro alguém poderia chegar à outra qualquer. Não precisaria ser uma fotografia o objeto de contemplação; estou me referindo a todas as nossas experiências sensíveis, seja assistindo à televisão ou a um filme, seja caminhando pelo bairro, ou como passageiro de ônibus ou trem. Nossa visão, no sentido de concepção de mundo, estará o tempo todo ligando cada impulso visual com a nossa imaginação.
Um mundo diferente, ou um espaço geográfico, pode ser percebido por cada um de nós: o empresário rico, o pobre despejado, o professor, a professora, o estudante, o morador de um bairro operário ou de um condomínio de luxo. Vemos vários mundos e agimos, ou não, para viver nesses mundos como os imaginamos. Nossos conceitos mediam nossa relação com o que está ao nosso redor, o espaço em que vivemos, bem como espaços mais distantes. Usando outras palavras, Rego (2003: 280) se refere a essa leitura como uma hermenêutica instauradora:

Seria exatamente essa hermenêutica [interpretação geográfica], no sentido de que ela tem esse texto primeiro, que é o espaço geográfico, e que através de seus conceitos vai relacionando estes fatos [geográficos] […] torna-se [então] possível estabelecer inter-relações e nexos explicativos entre os fatos e, portanto, níveis de entendimento cada vez mais complexos, com capacidade de articulação entre o particular e o global.

Dessa forma, ao trabalhar as HQs os alunos realizaram uma leitura geográfica, articulando fatos como a existência de pessoas pobres, moradores de rua, pessoas ricas, condomínios de luxo, favelas, desigualdade social, manifestações populares, engarrafamentos de trânsito, etc. enxergando nexos expressados em seus trabalhos, como, por exemplo, o da luta individual por ascensão social em um mundo capitalista e a imposição de haver uma história única a ser seguida por todos.

Sugerindo Caminhos
Sendo as imagens um importante meio pelo qual conhecemos o mundo, trabalhar com elas no ensino de Geografia se faz necessário e a maneira particular com que a linguagem dos Quadrinhos comunica tem muito a acrescentar a essa empreitada. As HQs podem auxiliar na construção de um olhar capaz de distinguir e dar sentido à torrente de imagens que nos chegam todos os dias pela mídia, procurando, assim, a interpelação dos discursos e praticando, portanto, uma leitura que é mais do que a recitação de palavras escritas, porque:

Leitura não é só livro. Leitura é tudo. […] Assim, pode-se dizer que uma leitura sempre é o caminho para outras mais, numa espiral sem começo ou fim. Um outdoor leva a uma fotografia, que leva a um vídeo, que leva a um programa de televisão, que leva a um desenho animado, que leva a uma história em quadrinhos, que leva a um livro, que leva a um filme, que leva a um outdoor anunciando a estréia de um longa-metragem (Vergueiro; Ramos, 2009:40)

Minha experiência se deu de forma complementar a aula expositiva do professor titular da turma participante do estudo. Nesse sentido, então, o trabalho não visou à superação de um dito modo antigo ou tradicional, nem se apresentou como a salvação para professores cansados e alunos desinteressados. Os Quadrinhos podem servir de ferramenta auxiliar para o conteúdo de Geografia, mas avançar desse uso puramente utilitarista para a construção de uma aula mais criativa e instigante me parece de grande interesse.
Sobre os Quadrinhos em sala de aula, Vergueiro e Ramos (2009, p.9) colocam: “Houve um tempo, não tão distante assim, em que levar revistas em quadrinhos para a sala de aula era motivo de repreensão por parte dos professores”. Se no passado as HQs eram incompatíveis com o ambiente escolar, essa realidade, como vimos, tem mudado.
Referências Bibliográficas

COSGROVE, D. (2008): Geographic and Cosmological Visions, Londres, Tauris.
FOUCAULT, M. (2004): Isto não é um Cachimbo, Porto Alegre, Sabotagem. McLOUD, S. (1995): Desvendando os Quadrinhos, São Paulo, Makron Books. OLIVEIRA Jr, W. M. (2009): «Grafar o Espaço, Educar os Olhos. Rumo a geografias menores», Pro-Posições, 3: 17-28.
OLIVEIRA Jr., W. M. (2010): «Vídeos, Resistências e Geografias Menores: Linguagens e maneiras contemporâneas de resistir», Terra Livre, 34: 161-176.
REGO, N.; SUERTEGARAY, D.; HEIDRICH, A. (2003): «O Ensino de Geografia Como Uma Hermenêutica Instauradora» en REGO, N.; C. AIGINER; C. PIRES; H. LINDAU (eds.) (2003): Um Pouco do Mundo Cabe nas Mãos, Porto Alegre, UFRGS,
275-308.

VERGUEIRO, W; P. RAMOS. (2009): «Os quadrinhos (oficialmente) na escola: dos PCN ao PNBE» en VERGUEIRO, W; P. RAMOS. (eds.) (2009): Quadrinhos na Educação, São Paulo, Contexto, 9-42.