A postagem de hoje é um extrato de minha dissertação de mestrado. Mais especificamente, o capítulo onde debato o uso das imagens na ciência geográfica, a partir dessa aproximação busquei fazer um gancho com as Histórias em Quadrinhos.
Relacionar imagens e textos, figuras e signos verbais, referências visuais e linguísticas. Atentar aos significados remetidos e perceber os sentidos produzidos. Rir, emocionar-se, entristecer-se, refletir ou identificar-se. São muitas as ações envolvidas na leitura das HQs, assim como também o são as maneiras como ela pode subjetivar as pessoas com sua conjunção de formas expressivas. A luz e a sombra, o uso das cores, as perspectivas do cenário, os distintos planos, o formato e o tamanho das letras (além das palavras formadas por estas e que dizem algo em algum idioma), o traçado empregado pelo artista na realização dos desenhos. Tratam-se, todos, de elementos que servem de meio para a transmissão das diversas mensagens e ideias a serem veiculadas. Nesse momento a pergunta é: apenas na linguagem dos Quadrinhos nos deparamos com essa forma híbrida de expressão?
A VISÃO ALÉM DO ALCANCE
Cosgrove fala de uma “inscrição geográfica”, ou seja, uma grafia sobre a superfície do planeta, mas que também, habitando as mentes, ganha, por vezes, forma em outros suportes físicos, tais como desenhos em uma folha de papel. No trabalho desse autor é dada grande importância para a discussão do que ele chama de “visões geográficas”, termo usado para se referir à imaginação humana a respeito do espaço geográfico, fazendo com que encontremos uma forte articulação entre paisagem, mapa, pictórico, imagem e visão.
Essa visão, para o autor, traz consigo outro sentido, diferente do normalmente usado e não abrange elementos óticos, mas subjetivos, que interpelam o mundo, formulando-o, reformulando-o ou pré-formulando-o. Dito de outra forma, diz respeito às concepções e ao que podemos chamar de “visão de mundo”.
O olho já não parece mais assim tão inocente e os mapas, talvez os instrumentos mais relacionáveis com a Geografia, passaram a trazer mais do que informações cognoscíveis, quantificáveis ou memorizáveis, pois se começa a perceber que outros aspectos da mente humana, mais imaginativos e subjetivos, entram em jogo na sua leitura e há tempos se lhes atribui a produção de significados e sentidos, através das imagens e iconografias apresentadas por eles.
A visão geográfica, ainda que habite os imaginários, também se converte, com o intuito de expressar-se, em formas físicas visíveis. Pode ser encontrada impressa nos mapas, desenhos, figuras, croquis, fotografias ou, inclusive, descrições escritas. Porém não se limitará a esses veículos e, como que buscando impor-se, se inscreverá no próprio espaço, por exemplo, nas simetricamente dispostas plantações de eucaliptos que recobrem parte do território do estado do Rio Grande do Sul, no traçado das ruas dos grandes centros urbanos e seus viadutos e avenidas, no design homogêneo dos condomínios, no isolamento dos bairros mais pobres, etc. Não existindo, necessariamente, uma ordem de início ou fim para esse percurso realizado pela inscrição geográfica, podendo ser da mente ao mundo ou vice-versa. Apresentando essa inscrição, então, duas dimensões: uma imaginativa e outra, material. Nesse estudo daremos uma maior atenção à primeira.
Em um estudo de Nola Gamalho, tratando das políticas urbanas adotadas em Porto Alegre nas décadas de 60 e 70, em conformidade com uma política nacional da época; é possível ver que a remoção de comunidades pobres das áreas centrais da cidade era (ainda é?) a principal atitude dos governantes. A imaginação dos administradores municipais considerava que, na “capital do futuro”, não caberiam mais os becos poeirentos e os casebres de madeira; estes deveriam ser substituídos por largas e compridas avenidas asfaltadas, viadutos, prédios e automóveis (Figura 1). As formas modernas da cidade ganharam expressão gráfica e, então, se concretizaram espacialmente, dando materialidade a um tipo de visão geográfica, que se sobrepõe às demais.
Segundo Cosgrove (2008) Platão faria referência a uma ordem oculta do mundo, a qual seria revelada pela Geometria, que significa, literalmente, a “medida da Terra”. Assim, podiam-se observar, através dos cálculos das sombras em diferentes horários e locais da superfície terrestre, os movimentos dos corpos celestes, mapeando uma ordem celestial sobre o espaço da Terra. Ordem visualizada, mais tarde, na retilínea paisagem humana de campos cultivados e fazendas. As obras de Ptolomeu – Almagesto e Geografia – serviriam de base para, milhares de anos depois, pensadores do Renascimento estabelecerem como sendo três as escalas do universo: a Cosmografia, que trataria das descrições e medições do universo (ainda influenciada pelo geocentrismo); a Geografia, preocupada com os fenômenos climáticos, as terras e mares do nosso planeta e a Corografia, que envolveria o estudo das regiões locais e paisagens.

Figura 1 – Porto Alegre do Futuro. Fonte – Zero Hora, 1970.
Acredito não caber aqui um aprofundamento dessas escalas do universo, as trago apenas para chamar a atenção ao sufixo “grafia” acompanhando cada uma delas. Ou seja, discursos construídos através do uso de imagens, da leitura e obtenção destas, em detrimento das palavras. Podemos identificar, então, um chamado “imperativo gráfico” inerente às visões de mundo, manifestadas principalmente de maneira visual, implicando formas, as quais, captadas por nossos olhos, procuram nos dizer alguma coisa.
Portanto, esse imperativo conduz a manifestações visíveis, gráficas. Por exemplo, historicamente, uma visão de um universo criado de maneira ordenada e harmoniosa por um Deus-Pai Todo Poderoso, procurou ser expresso em linguagens como mapas, diagramas, globos, gravuras e pinturas. Assim, encontramos círculos e formas geométricas simples, simetricamente organizadas nas imagens produzidas por Hartmann Schedel, publicadas em Crônicas de Nuremberg de 1493, e na obra do artista português Francisco de Holanda, de meados do século XVI (Figuras 2 e 3, respectivamente). Também, graficamente, o professor de matemática do Colégio Jesuíta na Roma do século XVII, Athanasius Kircher, construiu um mapa simbólico do mundo visto pelos jesuítas, onde no interior de vários círculos concêntricos, temos o ícone de Jesus Cristo, IHS (Iesus Hominibus Salvatorem), emanando sua luz divina para cada província jesuítica por igual, numa retórica gráfica, sintonizada com uma visão particular desse universo.

Figura 2 – Crônica de Nuremberg. Fonte – Luminarium: Encyclopedia Project, 2010.

Figura 3 – Francisco de Holanda. Fonte – Bibliodissey, 2008.
Ainda para Cosgrove, o anseio ordenador da harmonia universal também estaria presente no trabalho de Bacon quando manifestou, na obra Novo Organum, sua particular leitura do mapa-múndi, argumentando não ser fruto de um acaso a conformação dos continentes apresentada nele, amplos e abertos para o norte do globo e pontiagudos em direção ao sul (se referia aos continentes americano e africano). Esse fato, acreditava, era parte de mais um desígnio do senhor, o criador de tudo.
Além de buscar o papel de testemunha ocular, apresentando uma interpretação de uma realidade, carregada de concepções, anseios, esperanças e crenças, a visão simétrica e ordenada do mundo também se impõe sobre o mesmo. De que outra maneira se poderia interpretar uma linha reta traçada sobre o mapa-múndi, como fez o Papa Alexandre VI em virtude do Tratado de Tordesilhas, separando as possessões coloniais entre os impérios português e espanhol? O que fez o Papa? À régua, riscou uma reta sobre um mapa, o qual nada mais era do que um pedaço de tecido pintado, porém, acreditou-se que essa mesma linha se materializaria igualmente retilínea sobre as terras e oceanos, como se fosse possível dividi-los fisicamente. Dessa forma, repartindo o mundo entre os que imaginavam possuir o direito primeiro sobre ele.
Na Figura 4, vemos os contornos retilíneos dos limites entre os estados africanos do norte, aparentando terem sido riscados com o auxílio de réguas, lembrando muito a visão geográfica presente no Tratado de Tordesilhas. Que tipo de imaginação motivaria, principalmente, ingleses e franceses a dividir de forma tão arbitrária um vasto pedaço de continente, traçando retas sobre o papel e separando povos, costumes e culturas, afetando, talvez, outras visões, outras imaginações?
Continuando a comentar as visões geográficas impressas em mapas, Cosgrove nos traz as discussões estratégicas, entre pensadores imperialistas dos Estados Unidos e Inglaterra, que envolveram o Oceano Pacífico no final do século XIX. Um desses, Halford J. Mackinder, britânico, defendendo a importância estratégica de uma massa de terras como a Eurásia, impenetrável a qualquer ataque naval, formulou, para dar seu argumento gráfico, um mapa onde se vê na posição central o dito continente, chamado aqui de “área pivô”, deixando as Américas espremidas nas margens e, junto com elas, o Oceano Pacífico. Diminuindo, portanto, o tamanho daquela área do globo que passava a ser foco crescente de atenção das nascentes pretensões imperialistas dos Estados Unidos, um provável concorrente para o império britânico.
Para reforçar a ideia da dificuldade em proclamar uma ordem para o mundo e impô-la, poderia dar o exemplo dos cálculos geodésicos, pois, mesmo estes, ainda que rigorosos, admitem a irregularidade da superfície terrestre. Sabendo que o planeta Terra não apresenta a forma de uma esfera perfeita, os estudiosos preferem usar o termo geoide. Seja por modelos matemáticos ou por representações gráficas de todo tipo, a visão de um mundo ordenado se manifesta, buscando fazer visível essa suposta ordem.
Perceber as visões geográficas inscritas ou grafadas, manifestas e/ou impostas ao mundo, seja da forma que for, sobre o suporte que for, é um passo importante na construção de um entendimento crítico próprio sobre o espaço e de como se insere a nossa participação nele.

Figura 4 – O norte da África. Fonte – Movimento Missionário, 2009.
O MUNDO DAS IMAGENS E AS IMAGENS DO MUNDO
Discutimos até aqui, neste capítulo, como as visões geográficas se apresentam e se fazem visíveis pelas imagens. Porém, como ou por que essas imagens nos afetam? Por que lhes damos tanta importância? Procuro trazer outro aspecto dessa discussão envolvendo o olhar, a construção de conhecimento e a produção de significados.
Insistindo ainda na Geografia como uma grafia, creio, assim como Oliveira Jr, que nosso estudo sobre o mundo também se dá pelas imagens grafadas a respeito dele. Grafadas pelas cores, no caso das pinturas; pelos traços, no caso do desenho, ou pela luz, no caso das fotografias. Embora não seja possível afirmar qual linguagem nos aproxima mais da realidade, se as imagens ou se os textos escritos, muito do que acreditamos saber sobre esse “real” nos chegou pelas suas imagens, através de nossos olhos.
Na medida em que, desde a chamada “virada cultural”, avançam os campos de estudos focados nas práticas culturais, a importância dada à linguagem na construção de subjetividades nas sociedades vem crescendo. Essa passa a ser considerada como constituinte dos próprios objetos que denomina, os quais começam a existir para nós através dos nomes com os quais os chamamos. É certo que as coisas podem existir fora dos sistemas de classificação criados pelos humanos em suas relações sociais, ou, para dizer de outra forma, pelas culturas. Entretanto, é só dentro de um desses sistemas que elas passarão a fazer sentido.
Muitos estudos anteriores ao meu ampliaram as linguagens nas quais se considera que o conhecimento geográfico é produzido. Assim, o espaço geográfico pode ser estudado através dos desenhos, das fotografias, das pinturas, do cinema ou da televisão. Por que não acrescentar nessa lista as HQs? Se a linguagem nos “fala coisas”, mais do que “fala sobre coisas”, as imagens dos quadrinhos já não podem ser vistas como os inocentes receptáculos que transportam a realidade para diante de nossos olhos. Elas próprias são uma realidade.
Educar a maneira de ver também pode ser parte do ensinar Geografia e, para isso, não basta apenas um treinamento para distinguir os mínimos elementos espaciais. Para Oliveria Jr, é preciso construir um pensamento sobre o que é ver, pois é principalmente a partir do que vemos que conhecemos a realidade. Então, que realidade nos mostra as imagens?
Trago como exemplo, para uma possível resposta, a apresentação fotográfica de um colega[1]. Em uma das fotos do slide (Figura 5), era possível ver uma imagem na qual o verde das copas de árvores preponderava, ocupando mais da metade da composição. Depois, alguns postes de iluminação pública e placas publicitárias apareciam modestamente na sua parte inferior, uns mais altos e outros menos, como que se erguendo de um esconderijo para fazerem-se ver em meio ao verde dominante. A foto não deixava dúvidas a respeito de si. Ao vê-la, imaginei alguma localidade da serra, talvez. Porém, foi inevitável um sentimento de estranheza ao saber que ela foi tirada no centro da minha cidade, Porto Alegre. Pois, como Oliveira Jr coloca, a dúvida não está direcionada à imagem, mas à informação sobre ela. Quem diria que em meu banco de dados imaginário o verde não estava reservado para a capital gaúcha?

Figura 5 – Praça da Alfândega. Fonte – Registrada por Wagner Innocencio
Assim, temos as imagens como formadoras dos próprios lugares, considerando que nossa imaginação sobre eles é parte constituinte dos mesmos. Dar-se conta dessa dimensão e pensar como os lugares são mostrados no cinema, na fotografia, nos mapas, nas pinturas ou nas HQs é, também, pensar em Geografia. Da mesma maneira, é importante analisar esses suportes, não como portadores da própria realidade, que está além deles e por meio dos mesmos a vemos, mas sim, como construções humanas ou culturais que, afinal de contas, são. Mesmo a linguagem cartográfica, possuidora de credibilidade acadêmica e escolar, nada mais faz que “apresentar” outra versão do espaço diferentemente de “representar” algo, pois o que é visto por meio dela não pode ser estendido, fielmente, para além do que temos diante de nós.
Por que não poderíamos estudar Geografia fora da sala de aula? O mundo só é realmente conhecido por meio dos livros e mapas? E se pensarmos de outra forma? Por exemplo, do bairro Restinga, na zona sul, até o centro de Porto Alegre, uma pessoa pode passar, às vezes, mais de uma hora sentado em um banco de ônibus. Frequentemente, olhar pelas janelas é a principal distração dos passageiros do transporte público. Através delas, porções do espaço passam diante de nossos olhos e em cada parada prestamos um pouco mais de atenção em um ou outro detalhe. Por exemplo, a área verde que até semana passada estava ali e agora dá lugar a escavadeiras, caminhões e operários. Vemos também as casas pobres e as casas ricas, a quantidade de carros na avenida, uma carroça deixando o trânsito mais lento, as pessoas que, nas ruas, trabalham, pedem, protestam, etc. Como páginas de uma história ou slides de um projetor, se nos apresenta o espaço geográfico, cena por cena, não como apenas o conjunto da materialidade ao nosso redor, nem somente uma superfície inerte sobre a qual nos movemos. Qualquer noção que veja no espaço apenas um suporte para coisas estáticas, sem movimento, história ou inter-relações, está, por certo, em desconformidade com este estudo. É necessário considerar, tal qual Milton Santos, “o espaço geográfico como a soma indissolúvel de sistemas de objetos e sistemas de ações”. Ou seja, é uma forma de conceituar que articula o todo e as partes, compreendendo uma extensão de objetos em contiguidade e interação constante, conformando, dessa forma, uma visualidade. Assim, cabe ao Professor de Geografia a tarefa de educar o olho para uma leitura mais atenta dessa grafia espacial.
Coloco-me junto aos que acreditam na possibilidade de se apreender o conhecimento geográfico por meio das mais diversas linguagens e que, portanto, as imagens jogam importante papel. Podemos dizer que grafar nossa visão sobre o espaço é, de alguma forma, geo-grafar e isso é mais possível ainda se pensamos a prática da Geografia também como uma prática de leitura e interpretação do mundo. Os fatos geográficos podem ser como um livro cujas páginas estão sob nossos pés e ao nosso redor; estamos imersos neles. Em outras palavras, me refiro ao espaço geográfico, à maneira de Rego, como o texto da Geografia, que deve ser lido e interpretado em seu estudo.
[1] Durante o 4° Seminário do Programa de Pós-Graduação em Geografia/POSGEA-UFRGS: “Outra(s) Geografia(s): O Espaço e a sua Multiplicidade”. Relizado entre os dias 11 e 13 de maio de 2011, em Porto Alegre.
COSGROVE, Denis. Geographic and Cosmological Visions. In: _________. Geography & Vision: seeing, imagining and representing the world. Londre: I.B. Tauris, 2008. p. 13-48.
OLIVEIRA JR, Wenceslao M de; MANSUR, Mônica. Fotografias, Geografias e Escolas. Disponível em http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE_1364.pdf. Acesso em 26 out. 2012.
OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Grafar o Espaço, Educar os Olhos. Rumo a geografias menores. Pro-Posições, Campinas, v.20, n.3 (60), p. 17-28, set/dez. 2009.
OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Vídeos, Resistências e Geografias Menores: Linguagens e maneiras contemporâneas de resistir. Terra Livre, São Paulo, v.1, n.34, p. 161-176, jan/jun. 2010.
OLIVEIRA JR, Wenceslao M de. Fotografias Dizem do (nosso) Mundo: educação visual no encarte Megacidades, do jornal O Estado de São Paulo. In: TONINI, Ivaine Maria et al (Orgs.) O Ensino de Geografia e suas Composições Curriculares. Porto Alegre: UFRGS, 2011. p. 245-257.